quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Imperfeições perfeitas

O nosso Cipras também era de esquerda. Também ele ganhou as eleições da associação de estudantes da escola secundária. Ganhou, porque a lista A, encabeçada por um mini-homem de direita, daqueles que aos dezasseis anos já usava blazer, colete e lenço ao pescoço, não conseguiu conquistar os eleitores de mecanotecnia. Ganhou, porque as raparigas da turma de desporto achavam esse mini-homem convencido e maniento. Efectivamente, ele puxava as calças Levi’s 501 demasiado para cima, destapando por completo os tornozelos, asfixiando (presunção do autor) os testículos, espalmando-os, o que sempre deu uma ideia de virilidade achatada. As raparigas de dezasseis anos não gostavam disso. Para elas, as perfeições tinham de ser imperfeitas.
O nosso Cipras ganhou. O ping pong passou a ser gratuito, assim como os matraquilhos. Jogava-se sobe e desce clandestinamente, umas vezes a dinheiro, outras a cigarros. Às quintas, o Caldas trazia haxixe. As tardes eram todas livres. Livres de horários, responsabilidades, professores e obrigações. Livres, de liberdade. Livres de culpa. Livres de ser livre. Livres porque o nosso Cipras ganhou e nos deixava ser livres. Livres, porque ser livre era ser um pouco imperfeito. E aquelas miúdas não gostavam de perfeições, que não fossem de todo imperfeitas.
O nosso Cipras foi destituído pelo conselho directivo, por excesso de imperfeição. 
Assim era o antiquado mundo da democracia.

E.M.Valmonte

domingo, 25 de janeiro de 2015

Lenço de limpar lágrimas de amores infinitos

Correm lágrimas do teu rosto, dos teus para os meus
do mesmo desgosto, da mesma maresia não queria
vergonha de ensopar o lenço ao homem pequeno
choro de parco senso coragem de o procurar no feno
ao homem ao choro coro de vozes intermitentes
tem medo de tremer sem dentes cego vago
chorar de estupidez inunda mais que a dor
cravada no peito o sabor de saber a doer de morrer
tão devagar sem amar que a morte se esqueceu
que também doeu daquela dor matina do ouro
prata platina da esmola que fez comer os olhos
do teus para os meus última lágrima bufar do touro
investe porque se despe à noite que não dormiu
despe-se deita-se escorre o último lamento
morreu de morrer de sofrimento de ti de outro
corpo morto enxaguo os restos  dos podres dos pobres
sem lenço de limpar lágrimas de amores infinitos 

E.M. Valmonte

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Je suis Charles Bukowski


Blue bird

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

No medo da virgem e do menino

Saberei dizer aos outros
o que levas de mim para dentro de ti
a arfar, que de um pedaço que era teu
fiz de mim aquele homem, que ontem morreu

morri de morrer, de achar que saber viver
mais que hoje, morrer de mais por menos
que devia viver sem esperar o morrer
do cadafalso à memória dos humanos

fraqueza na força do fraco do querer
não fosse o fraco de força a crer
lá a coragem do forte se esvaecia
no medo da virgem e do menino

E.M.Valmonte

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Je suis Charles Bronson


"Se os queremos atingir, devemos fingir que os ignoramos." - E.M. VALMONTE






 
mesmo que, de quando em vez, o seu visionamento mais atento provoque uma espécie de apoplexia nervosa, induzindo-nos a uma falsa sensação de tremor. 
Diz-nos a experiência, que nunca passará de um mero espasmo circunstancial, que pode ou não provocar erecção.
Nestas problemáticas mais laicas, a proximidade pode tornar-se fundamental, pelo que, fingindo que os ignoramos, torná-los-emos mais expostos no futuro. 


E.M. Valmonte

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Bando de estorninhos



Gosto tanto disto. Enquanto faço a barba, oiço o ribombar de um estorninho. Ai se eu pudesse estocar aqueles sons. Ai se eu pudesse ter aquela liberdade de agora cantar e de amanhã voar. Ai se eu pudesse na terça, cagar lá de cima da torre da igreja. Cagar para todos sem que ninguém me veja. Ai se eu pudesse, hoje debicar destas nêsperas, sem ninguém me denunciar à vizinha que tem nariz de porca. Ai se eu pudesse não cantar, nem ter que voar.
Ai se eu pudesse …
Chorei, chorei… se eu pudesse doar a dor, a quem me fez mal. Ai se eu pudesse sofrer por eles. Não fossem as dores nas costas, e eu seria o mártir perfeito para sofrer por pena. Não fosse a incómoda paixão e eu morreria por ti. Não fosse por ti, eu morreria na mesma. Não fosse por mim e o que seria de ti? Sem mim, serias apenas um pouco de mim à deriva.
Ai se eu pudesse, ser de novo o Conan. Quem serias tu, sem espaço para ser? Serias apenas um pedaço de mim, nas margens das folhas pardas que usámos há quarenta anos, para nos declararmos à liberdade. Ainda nesse tempo te disse que te amava. E hoje poderia dizer o mesmo, não fosse o convencido estorninho interromper-me o barbear, com aquelas granjeadas efusões de paixão. Distrai-me do amor. Distrai-me de viver depois de lavar os dentes. Perfumo-me, compro pão e saio, para mais um dia, que se tiver fim, será apenas mais um princípio de um granjear de mais um qualquer…estorninho.

E.M.Valmonte

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A Clara partiu o braço quando fugia dos dragões.

Se eu fosse um rapaz de verdade, tinha uma espada de madeira e defendia a única princesa do reino. Tínhamos uma casa na árvore e uma escada de liamba. O vento batia-lhe nos cabelos e trazia-me o cheiro a amêndoa. Ajudava-a a descer pelo tronco, quando a mãe a chamava para o jantar. A espada de madeira, presa nas presilhas das calças, dificultava a saída airosa do reino e sempre me deu um ar atabalhoado ao entregar a princesa ao mundo dos crescidos. Ela, de vestidos de abas largas, movia-se sempre como se voasse e cada dia que passava, por cada dente frontal que me caía, mais se elevava o desejo e a vergonha de me tornar o seu único rei, para todo o sempre.
Trocávamos o lanche como os crescidos trocam o desejo de estar juntos. Afinal era amor, mesmo que fosse em ponto pequeno. Afinal era amor…
Um dia, Jaime e os restantes rapazes atacaram o nosso castelo. Desembainhei a espada, tirei a flor da minha lapela, fechei-a na mão de Clara e corri, gritando como um herói cheio de coragem. Estava disposto a matar e também por isso, sabia que podia morrer.

Lutei como nunca o fizera antes. Clara tropeçara a fugir e partira o braço. Defendera-a, como se defende a vergonha do dia seguinte. Talvez por isso, tenha sido eu o primeiro a escrever-lhe no gesso do braço. “Uma espada de madeira, também defende um reino”. Clara abriu a mão, devolvendo-me a flor à lapela.



E.M Valmonte

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Era uma mulher pequena. Tornou-se pequena, pelo amarrotar da vida. Tornou-se pequena, também na dignidade. Nunca teve a culpa. Foram sempre os outros que a pontapearam para fora da vida. Ela também sabe que tentou pouco, mas mesmo que se tivesse esforçado, nunca teria sido mais do que a puta que foi. Talvez uma puta mais digna, mas sempre uma puta. E sempre preferiu ser uma boa puta, do que uma sonsa de merda sem comichão na rata. Ainda assim, a vida sempre pareceu que se divertiu com ela. Chamava-se Fé. Maria da Fé, mas todos a conheciam apenas por Fé. Também ela tinha uma áurea resplandecente, de quem aparece aos outros, quando eles precisam de acreditar nalguma coisa em grupo. Fé deixou de acreditar… ainda cedo. Os outros deixaram de acreditar nela… quando o seu corpo cedeu. A Fé foi-se desvanecendo. Morreu... quando todos deixaram de acreditar.

E.M. Valmonte



segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Dar a volta



Na vereda estava trilhado um caminho estreito, de terra, feito pelo caminhar de pessoas, que umas atrás das outras, foram escolhendo o mesmo trilho. Apenas mais um denso caminho, que não levava a lado nenhum. Apenas ia para lá e para que se voltasse, seria preciso muita imaginação. No fim do caminho, uma espécie de altar, uma corda pendurada numa árvore e uma pilha de corpos decompostos. Cheirava a ferro e a pinheiro. Fecharam o caminho de volta. Um braço que se mexeu, como que se despedisse para sempre daquela breve visita. Afinal não existia nenhuma espécie de vida, apenas um vento forte que fez aquele corpo inanimado mexer-se como um pêndulo. Também a corda na árvore ganhava vida, lembrando o temor dos homens. Algures por ali existia um outro caminho, mesmo que este não fizesse regressar a lado nenhum conhecido. Há caminhos que só vão e outros que regressam, não pelas mesmas pedras, mas dando a volta. Há homens que só vão e nunca dão a volta. São esses, que seguram na corda e a fazem parar, esticando-a até ao seu limite.

E.M. Valmonte

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Circo #



O rapaz que se enrolava como um bicho-de-conta era a atração do circo, sempre que faltava o trapezista sem pernas ou a gorda que vomitava ovos cozidos. O rapaz aprendeu a enrolar-se como um bicho-de-conta, porque passou muito tempo a observá-los. Fazia um círculo na areia e colocava os bichos-de-conta, um a um, como se se tratasse de um coliseu e ele o dono daqueles gladiadores. Erguia o punho no ar, decidindo sobre a vida e a morte do bicho-de-conta derrotado. Decidiu sempre sobre a vida. Recolhia o bicho-de-conta enrolado, encaminhava-o para uma caixa de fósforos diferente, como que castigando a falta de coragem e a derrota. Aprendera estes castigos com os seus pais, que o castigavam no quarto isolado, sempre que ele não conseguira as moedas necessárias para o pão e o leite do dia. Também ele se enrolava nesses dias de castigo. 

E.M. Valmonte