Embora existissem lugares vazios,
viajava sempre de pé, encostado a um seboso varão de ferro, que sempre me
sustinha do medo do inferno e das alergias aos outros. De pé, sente-se na pele
a coragem de olhar as pessoas nos olhos. De pé, foge-se mais depressa dos outros,
de nós e daquela aragem contaminada dos hálitos picantes das pessoas. Eles que
falam, fungam, espirram, berram, tossem, coçam, morrem aos minutos, matam-me lentamente
por excesso de contacto. O chinês olhou-me pela última vez. Adormeceu. Se o
tivesse degolado naquela altura, eu teria sido a sua última memória. Demasiada
responsabilidade para quem não sabe ao certo se existe céu e inferno; eu
agarrado a um chinês degolado, julgado por seres divinos, aquiescendo-me os
meus melhores pecados.
Os indianos à minha frente riam
baixinho. Riam-se de mim e para mim. Riam-se dos turistas alemães de classe
média. Usavam meias brancas e também usavam sandálias. E riam-se de mim.
Os angolanos no fim da carruagem
falavam alto. Viviam em bairros fodidos.
Viviam aturdidos. Podia não parecer, mas viviam assustados, controlados,
manipulados. Falavam alto, de mim e para mim. Percebi que era medo. Medo…de
ser. Medo de não ser, mais que apenas nada. Medo que eu fosse melhor que eles.
Uma loura de seios grandes riu-se
para mim.
Sentado junto à porta de correr,
estava um homem que lia um livro sobre pássaros. Sonham mais as pessoas que
leem sobre pássaros. Óculos grandes, gravata de seda de nó largo, desafogando o
travo da guerra que nunca passara da glote.
Avenida.
Levou-me o preconceito a crer que
todas as louras, de seios grandes, poderiam gostar de mim.
Esbofeteado nos restauradores.
Esbofeteado o preconceito na
baixa-chiado. Abriram as portas de correr. Saltei do ímpeto da minha vergonha,
corria a loura de raiva, esmurravam-me os pretos de excesso de poder, cuspiam-me os
alemães de desprezo, riam-se os indianos de mim.
O homem que lia um livro sobre
pássaros, seguiu para o terreiro do paço, onde acabou por se suicidar no rio
tejo.
Em Santa Apolónia, levantaram do
chão um chinês, que ainda jorrava sangue pela veia jugular.
Nuno Miranda Torres