As tardes eram passadas a jogar
futebol, no quintal da avó do Caricas. A dona Fernanda, cabelo grisalho da
sujidade do tempo, andar perro de quem carregou muitos tarros de água no
Alentejo, sabia como agradar um bando de miúdos. Dava-lhes lanche e a jovial
liberdade de acharem que são livres.
Das mochilas, imaginavam-se balizas,
das tampas e das pedras, as bolas, e do Caricas, do Botas, do Ângelo, do
Mata-Gatos, famosos jogadores cheios de sonhos e uma habilidade própria de quem
chutava as caricas como bolas e a própria vida como um sonho inacabado. Nessa
altura os jogos de futebol não tinham tempo. Nessa altura, virava aos cinco e
acabava aos dez. O lanche da dona Fernanda era servido habitualmente no fim do
jogo, mas podia ser no intervalo, tudo dependia de quantos golos estavam
marcados às cinco da tarde. O neto Caricas, era quem decidia se os papos-secos
eram recheados com manteiga ou se barrados com tulicreme; e isso dependia do
resultado da equipa do Caricas, aquando chamados pela dona Fernanda.
O Caricas jogava com o Ângelo e o
Botas com o Mata-Gatos. Ganhava quase sempre o Caricas e os papos-secos eram
quase sempre recheados com tulicreme. Não sei se os outros dois não facilitavam
constantemente, à procura de um lanche mais achocolatado; sabor que conheceram
ali, pela primeira vez. Em casa, os frigoríficos ecoavam as dificuldades dos
anos oitenta. Apenas ali, na casa da dona Fernanda, o futuro era servido com a
calma de quem pode esperar pela morte sem pressa.
Um dia, o Botas estava inspirado.
Exibição soberba, brindada com sete golos. O Caricas apenas conseguira marcar
um. Nesse dia, virou aos cinco, mas não acabou aos dez. Nesse dia, nem sequer
houve lanche, nem jogo de match point
no ZX Spectrum, nem sequer aquela amizade
genuinamente achocolatada, foi prometida para o dia seguinte. Nesse dia,
abandonaram cabisbaixos, sabendo que a vaidade teria que ficar órfã de festejos.
Nunca mais se viram. A dona Fernanda morreu mais tarde e aquelas crianças, cresceram
a saber que as pessoas importantes, gostam de ganhar sempre, os jogos.
E.M. Valmonte
Memórias achocolatadas doces e amargas, tudo faz parte EM...
ResponderEliminarBFS. Abraço . D
http://acontarvindodoceu.blogspot.pt
Caríssima M D
EliminarJá diziam os Ornatos:
A cidade está deserta,
E alguém escreveu o teu nome em toda a parte:
Nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas.
Em todo o lado essa palavra
Repetida ao expoente da loucura!
Ora amarga! Ora doce!
Pra nos lembrar que o amor é uma doença,
Quando nele julgamos ver a nossa cura!
Obrigado.
Isso faz-me lembrar "O Gordo" (nome fictício mas, ainda assim, verdadeiro). Na minha escola primária o Gordo levava sempre bola, ainda por cima das boas. Como a bola era dele, o Gordo fazia as equipas, curiosamente os craques ficavam sempre do seu lado, tirando aqueles que preferiam jogar com bolas piores a jogar com o Gordo que, não contente em escolher as equipas, na sua mandava e desmandava em quem ia à baliza, quando ninguém se oferecia.
ResponderEliminarQuando o jogo corria bem, o Gordo facturava jogando isolado na frente, sempre à mama até dar o toque para voltar às aulas. Nas poucas vezes em que a coisa corria mal, quando os fracos se faziam fortes e superavam a equipa do Gordo, mas ele via que a coisa já não ia lá, acabava o jogo, na hora.
Foram poucas as vezes que joguei com o Gordo mas, quando o fazia, preferia jogar na equipa mais fraca e varrer-lhe umas boas caneladas. Mea culpa em relação a valores mais altos.
Depois da escola primária não o voltei a ver mas tenho a certeza que, se continuou assim, teve tudo o que de mau é preciso para ser "bem sucedido" :)
Caríssimo Sérgio
Eliminar"O Gordo" é uma figura que sempre existirá. Ainda bem que os tivemos na primária. Ficámos logo preparados para o que a vida nos iria reservar: Uma mão cheia de "gordos" sempre à espreita de uma oportunidade.
Cuidado com esses "gordos".
Abraço