Naquele dia, Arménio não estava
disponível. Tinha catequese até tarde. Naquele princípio de Outono, era apenas o
António e o Jerónimo, de um grupo que sempre fizera esquecer a solidão e os
medos. A dois, não se jogava ao berlinde, mesmo que a imaginação sempre fizesse esquecer o eco que vinha dos quartos. Alguém tinha que dizer “últimos”, “penúltimos” e “marralhões”,
“cavalinho-branco” ou “estrela-do-universo”. Palavras de
comando que delimitavam a ordem de começar a jogar.
O Pedro e o Paulo foram com os pais buscar meio borrego à terra. Restava a Catarina, que o pai era comunista,
e tinha um olho-de-boi lindo de morrer, mas tinha pouco jeito com os berlindes,
embora uns olhos apaixonantes de quem gostava de brincadeiras de rapazes.
Os calcanhares de Jerónimo calcavam
a terra até aparecerem buracos perfeitamente redondos. Era sempre Jerónimo que
fazia os buracos na terra, que os calcanhares dele passaram por mais adversidades na
vida e eram mais ásperos, próprios para aquele serviço. António, astuto por
natureza, disse “últimos”, ainda antes de Jerónimo acabar o buraco do piras.
Esqueceu-se António que naquele mundo ingénuo-arcaico do berlinde, dizer
“últimos” não asseguraria a vantagem de jogar em último. Jerónimo, filho de um
homem fabril e duro no trato, mas honesto, disse “penúltimo” de forma convicta e
Catarina seguiu-o dizendo primeiro “marralhões”, emendando depois para
“cavalinho-branco” por ser mais bonito e poético.
Os buracos distavam entre si,
milimetricamente, o regulado e aceite universalmente como um palmo de criança.
A ordem de jogo, ganha por justiça e honra era “últimos, marralhões,
cavalinho-branco, penúltimo e estrela-do-universo”. António, agora menos
confiante, arremessou o primeiro berlinde, que distou consideravelmente do
primeiro buraco. Seguiram-se Catarina e Jerónimo, assim como seguiu aquela
tarde, igual a muitas outras, irrompendo-se pelo escurecer do dia e da hora de
sempre recolher a casa.
Fiquei por saber se acabaram o jogo.
Prometia sagacidade ao início do meia-piras, para lá do piras, ao chegar ao
matas. Abandonei-os quando a minha mãe me chamou para tomar banho. Discutiam
sobre o tamanho do palmo de António no terceiro buraco. Nunca se entendiam quanto ao tamanho dos palmos.
Muitas vezes, mesmo muitas vezes não
se acabavam os jogos. O rufia do Aníbal aparecia sempre ao fim da tarde, depois
de varrer a drogaria do pai, e com o abafador (uma leiteira imaculada), abafava
os berlindes mais pequenos dos outros, as ideias maiores dos outros e o resto das
crianças que ainda existiam por ali.
Sorte que eu, sempre tomei banho
mais cedo que os outros.