segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A sorte da injustiça



O homem coxeava. Tinha um coxear de quem tinha dois centímetros a menos numa das pernas. Os olhos cruzavam-se num estrabismo mórbido. Falava ao telemóvel e dessa mão que segurava o aparelho, pendia um molho de chaves e um amuleto. As crianças fugiam dele enquanto gritavam. Os gritos não o deixavam comunicar com a única pessoa no mundo, que o amava. O homem enfurecia-se e andava mais depressa, quase correndo, embora com aquela sensação que ao tentar correr, estava permanentemente a subir pequenos degraus. Cansado de correr daquela forma estranha. Cansado de crianças. Cansado do mundo. E também deste mundo cheio de crianças que o obrigavam a correr daquela forma estranha. Quanto mais corria, mais as crianças gritavam. Mais ele corria. Mais elas gritavam...corria....gritavam...corria

Parou.

Gritava mais alto que qualquer criança, enquanto arremessava o telemóvel contra uma parede, desfazendo-o, ao mesmo tempo que desfazia a sua própria dignidade. Foi preso por dois polícias a pedido de um dos pais, de uma daquelas crianças, que gritavam tão alto que não deixavam ouvir a própria alma. 

O pai delator voltara ao vernissage. Voltara de forma triunfal, com o ar de um herói e de dever cumprido. Estes anormais a assustar as criancinhas. Abrira os braços acolhendo os amigos cheios de risos mordazes de quem acabara de aceder à imortalidade. Nos espelhos, refletiam as luzes intermitentes da urgência. No meio da intermitência, o olhar desviado de um estrábico, como que pedindo a morte divina daquele grupo de pessoas, que nunca souberam assustar criancinhas, mesmo que, de quando em vez, elas bem precisassem.
Perdera as chaves e o amuleto, quando lhe amordaçaram as mãos e os gestos, algemando-o para sempre à injustiça de se sentir um anormal. As chaves replicam-se. O amuleto é desnecessário, principalmente para um coxo que também é estrábico. A injustiça, crava-se no peito. É daí, do fundo desse lugar estranho, que nasce a vingança.

E.M. Valmonte

4 comentários:

  1. Excelente e muito bem escrito!
    Parabéns!

    Beijos

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  2. O verdadeiro coxo estrábico é o pai que está na vernissage!

    Beijinhos Marianos, E.M. V.! :)

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    1. o mundo está cheio desses coxos estrábicos
      obrigado

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