O homem coxeava. Tinha um coxear de quem tinha dois centímetros a menos numa das
pernas. Os olhos cruzavam-se num estrabismo mórbido. Falava ao telemóvel e dessa
mão que segurava o aparelho, pendia um molho de chaves e um amuleto. As
crianças fugiam dele enquanto gritavam. Os gritos não o deixavam comunicar com
a única pessoa no mundo, que o amava. O homem enfurecia-se e andava mais
depressa, quase correndo, embora com aquela sensação que ao tentar correr,
estava permanentemente a subir pequenos degraus. Cansado de correr daquela
forma estranha. Cansado de crianças. Cansado do mundo. E também deste mundo
cheio de crianças que o obrigavam a correr daquela forma estranha. Quanto mais
corria, mais as crianças gritavam. Mais ele corria. Mais elas gritavam...corria....gritavam...corria
Parou.
Gritava
mais alto que qualquer criança, enquanto arremessava o telemóvel contra uma parede, desfazendo-o, ao mesmo tempo que desfazia a sua própria dignidade. Foi
preso por dois polícias a pedido de um dos pais, de uma daquelas crianças, que gritavam
tão alto que não deixavam ouvir a própria alma.
O
pai delator voltara ao vernissage. Voltara de forma triunfal, com o ar de um herói
e de dever cumprido. Estes anormais a assustar as criancinhas. Abrira os braços
acolhendo os amigos cheios de risos mordazes de quem acabara de aceder à imortalidade.
Nos espelhos, refletiam as luzes intermitentes da urgência. No meio da
intermitência, o olhar desviado de um estrábico, como que pedindo a morte
divina daquele grupo de pessoas, que nunca souberam assustar criancinhas, mesmo
que, de quando em vez, elas bem precisassem.
Perdera
as chaves e o amuleto, quando lhe amordaçaram as mãos e os gestos, algemando-o
para sempre à injustiça de se sentir um anormal. As chaves replicam-se. O amuleto
é desnecessário, principalmente para um coxo que também é estrábico. A
injustiça, crava-se no peito. É daí, do fundo desse lugar estranho, que nasce a vingança.
E.M. Valmonte
Excelente e muito bem escrito!
ResponderEliminarParabéns!
Beijos
muito obrigado.
EliminarO verdadeiro coxo estrábico é o pai que está na vernissage!
ResponderEliminarBeijinhos Marianos, E.M. V.! :)
o mundo está cheio desses coxos estrábicos
Eliminarobrigado