A noite caíra, lentamente e de uma
forma quase quase mortífera. Vinha polvorizada de um nevoeiro cerrado, o que me
levou à experiência mais eloquente de quase quase cegueira. Os candeeiros
hibernavam e os gatos pretos escondiam-se, não de mim, mas do esgar de
mortandade que se sentia naquele beco. Uma pequena brisa levantara-se da
esquina e percorria toda aquela rua, concedendo-lhe alguma sonoridade. Competia
apenas com o ping ping de sucessivas
gotas, provindas de uma caleira e que se incandesciam numa chapa de zinco,
muito para lá de ferrugenta. Não se via nada. O olfacto tomava a liberdade de
me mostrar caminhos inenarráveis. Cheirava a sangue, daquele sangue vermelho
vivo, que ainda cheira a vida. E cheirava de forma abundante. Encostei-me, sentei-me
e acabei por me deitar. Esperava que o tacto me respondesse àquela sensação de
morte, que ali se vivia.
A que sabe um beco cheio de corpos
mortos, cobertos de sangue?
Começara a chover. Sentira-a na cara,
como agulhas afiladas que me estimulavam a dor. As grelhas dos esgotos
escondiam as miudezas da noite, silvando a corrente a passar. Cheirava
intensamente a ferro.
Fiquei sem saber a que sabe, a dor de
doer, de quase quase morrer, daquele excesso de noite que escorreu pelos
esgotos.
E.M. Valmonte
Que texto negro!
ResponderEliminarCarissima S*
EliminarPor vezes faz falta a negritude. Lembra-nos que nem sempre os dias são resplendorosos.