quinta-feira, 5 de março de 2015

Escondeu-se

Afinal a noite estava fria. Demasiado fria para amar, sem ser correspondido. Uma noite normal, para quem acabara de assassinar o seu padrasto com trinta e cinco facadas no bucho e mais uma em cada olho. Assim tinha a certeza que ele jamais voltaria a olhar para ela. Depois disso, não vira mais ninguém. Escondeu-se, sabendo que na sala de bilhar já todos sabiam quem tinha assassinado o bibliotecário.
Perto do quiosque do velho Banzé via-se a janela dela. As luzes estavam acesas e os estores ainda não tinham sido corridos.
Chegou-se mais perto, assobiou de forma trinada, como costumava fazê-lo para a chamar, quando faziam aqueles intermináveis passeios à beira rio. Ela assomou-se à janela, logo que o viu, riu-se e acenou-lhe, enviando-lhe três beijos seguidos. Despediram-se. Ele sabia que nunca mais a iria ver. Ela pensava que era apenas mais uma noite e que no outro dia, ele iria buscá-la à escola e voltaria a passear com ela à beira rio. Despediram-se. Guardou na memória aquele riso sem os dentes da frente. Levou com ele os três melhores beijos da sua vida. Escondeu-se na noite, à medida que ela corria os estores da janela, até não sobrar nenhuma fresta, nem de janela, nem de esperança.

Escondeu-se.

Nuno Miranda Torres

Sem comentários:

Enviar um comentário