Ela parecia um
homem. À medida que se foi tornando mais velha, foi-se parecendo cada vez mais
com o seu pai. Vinha do vale, de enxada apoiada no ombro e uma pequena saca de
batatas equilibrada na cabeça. Sempre trabalhou no campo, durante toda a sua
vida. Gostava do cheiro da terra e do centeio; era do chilrear dos tordos que
tirava a melodia da sua vida. Quando passava pelas vinhas dos seus vizinhos,
cuspia no chão, pois lembrava-se sempre do vinho e do seu marido, que o bebia incessantemente
há mais de trinta anos. Casada há trinta e dois anos, a sua pele como que
mapeava as sucessivas agressões sofridas. Talvez fossem as cicatrizes que a fizessem parecer um homem, quando a víamos ao longe. E também o bigode, contrastava com a doçura da voz.
Nesse dia,
entrou em casa perto da hora do almoço. Ela sabia que estava atrasada e tentou
não fazer barulho. A água já borbulhava, faltava descascar as batatas e cozer o
peixe.
-tão o entulho? – inquiriu o marido com
voz enlutada e um cheiro fétido a decomposição.
Ela destapou o
tacho, averiguando o estado do cozinhado, aconchegando-o com uma real previsão cirúrgica.
- cinco minutos -
disse ela, com a mesma voz doce de há trinta anos.
Sentiu uma dor
forte perto da orelha, provinda de uma bofetada de mão esticada que a fez cair.
Ela já adivinhava que a seguir vinham os pontapés na barriga e nas costas e se
a bebedeira já fosse grande, mais tarde ou mais cedo, lá receberia uma pancada
na cabeça.
A água do peixe
entornava-se, o almoço atrasava-se, mas ela deixara de ter forças para
caminhar, para cuidar e já há muito que deixara de amar.
Ele puxava-a
pelos cabelos, insultando-a de cadela ordinária. Levantou-a, e agora de mão
fechada, agrediu-a sucessivamente, esfacelando-lhe a sobrancelha. Ela caiu novamente,
desta vez por cima do cabo da enxada, que lhe deve ter partido uma costela.
Conseguiu
levantar-se a custo. De uma das mãos escorria sangue do golpe da sobrancelha.
Na outra mão, segurava a enxada, enquanto olhava pela janela e ouvia o tal
chilrear dos tordos, que sempre lhe deu vida e ao mesmo lhe tirava para sempre a
liberdade de sobrevoar o centeio.
Num último
espasmo das suas forças, enfiou a lâmina da enxada no crânio do marido,
abrindo-o a meio, até sensivelmente perto do nariz. Jorrava sangue em catadupa,
tal como jorrava a água do tacho do peixe.
Apagou o lume,
retirou as batatas, a posta de garoupa e regou tudo com um fino e dourado fio
de azeite.
Estava chateada,
porque as batatas estavam espapaçadas e desfaziam-se. Cozeram tempo demais.
Olhava
livremente pela janela aberta, para tirar o cheiro a ferro, por onde entrava um
leve cheiro ao centeio, que bailava lá em baixo no vale.
Nuno Miranda Torres
A liberdade tem custos que nunca deveriam ter que ser cobrados!
ResponderEliminarBeijo. :)