quarta-feira, 11 de março de 2015

Sobrevoar o centeio




Ela parecia um homem. À medida que se foi tornando mais velha, foi-se parecendo cada vez mais com o seu pai. Vinha do vale, de enxada apoiada no ombro e uma pequena saca de batatas equilibrada na cabeça. Sempre trabalhou no campo, durante toda a sua vida. Gostava do cheiro da terra e do centeio; era do chilrear dos tordos que tirava a melodia da sua vida. Quando passava pelas vinhas dos seus vizinhos, cuspia no chão, pois lembrava-se sempre do vinho e do seu marido, que o bebia incessantemente há mais de trinta anos. Casada há trinta e dois anos, a sua pele como que mapeava as sucessivas agressões sofridas. Talvez fossem as cicatrizes que a fizessem parecer um homem, quando a víamos ao longe. E também o bigode, contrastava com a doçura da voz.
Nesse dia, entrou em casa perto da hora do almoço. Ela sabia que estava atrasada e tentou não fazer barulho. A água já borbulhava, faltava descascar as batatas e cozer o peixe.
-tão o entulho? – inquiriu o marido com voz enlutada e um cheiro fétido a decomposição.
Ela destapou o tacho, averiguando o estado do cozinhado, aconchegando-o com uma real previsão cirúrgica.
- cinco minutos - disse ela, com a mesma voz doce de há trinta anos.

Sentiu uma dor forte perto da orelha, provinda de uma bofetada de mão esticada que a fez cair. Ela já adivinhava que a seguir vinham os pontapés na barriga e nas costas e se a bebedeira já fosse grande, mais tarde ou mais cedo, lá receberia uma pancada na cabeça.
A água do peixe entornava-se, o almoço atrasava-se, mas ela deixara de ter forças para caminhar, para cuidar e já há muito que deixara de amar.
Ele puxava-a pelos cabelos, insultando-a de cadela ordinária. Levantou-a, e agora de mão fechada, agrediu-a sucessivamente, esfacelando-lhe a sobrancelha. Ela caiu novamente, desta vez por cima do cabo da enxada, que lhe deve ter partido uma costela.
Conseguiu levantar-se a custo. De uma das mãos escorria sangue do golpe da sobrancelha. Na outra mão, segurava a enxada, enquanto olhava pela janela e ouvia o tal chilrear dos tordos, que sempre lhe deu vida e ao mesmo lhe tirava para sempre a liberdade de sobrevoar o centeio.

Num último espasmo das suas forças, enfiou a lâmina da enxada no crânio do marido, abrindo-o a meio, até sensivelmente perto do nariz. Jorrava sangue em catadupa, tal como jorrava a água do tacho do peixe.
Apagou o lume, retirou as batatas, a posta de garoupa e regou tudo com um fino e dourado fio de azeite.
Estava chateada, porque as batatas estavam espapaçadas e desfaziam-se. Cozeram tempo demais.
Olhava livremente pela janela aberta, para tirar o cheiro a ferro, por onde entrava um leve cheiro ao centeio, que bailava lá em baixo no vale. 


Nuno Miranda Torres

1 comentário:

  1. A liberdade tem custos que nunca deveriam ter que ser cobrados!

    Beijo. :)

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