quarta-feira, 27 de maio de 2015

Um metro de preconceito. Ou talvez fosse um pouco maior



Embora existissem lugares vazios, viajava sempre de pé, encostado a um seboso varão de ferro, que sempre me sustinha do medo do inferno e das alergias aos outros. De pé, sente-se na pele a coragem de olhar as pessoas nos olhos. De pé, foge-se mais depressa dos outros, de nós e daquela aragem contaminada dos hálitos picantes das pessoas. Eles que falam, fungam, espirram, berram, tossem, coçam, morrem aos minutos, matam-me lentamente por excesso de contacto. O chinês olhou-me pela última vez. Adormeceu. Se o tivesse degolado naquela altura, eu teria sido a sua última memória. Demasiada responsabilidade para quem não sabe ao certo se existe céu e inferno; eu agarrado a um chinês degolado, julgado por seres divinos, aquiescendo-me os meus melhores pecados.
Os indianos à minha frente riam baixinho. Riam-se de mim e para mim. Riam-se dos turistas alemães de classe média. Usavam meias brancas e também usavam sandálias. E riam-se de mim. 
Os angolanos no fim da carruagem falavam alto. Viviam em bairros fodidos. Viviam aturdidos. Podia não parecer, mas viviam assustados, controlados, manipulados. Falavam alto, de mim e para mim. Percebi que era medo. Medo…de ser. Medo de não ser, mais que apenas nada. Medo que eu fosse melhor que eles.
Uma loura de seios grandes riu-se para mim.
Sentado junto à porta de correr, estava um homem que lia um livro sobre pássaros. Sonham mais as pessoas que leem sobre pássaros. Óculos grandes, gravata de seda de nó largo, desafogando o travo da guerra que nunca passara da glote. 

Avenida.
Levou-me o preconceito a crer que todas as louras, de seios grandes, poderiam gostar de mim.
Esbofeteado nos restauradores.
Esbofeteado o preconceito na baixa-chiado. Abriram as portas de correr. Saltei do ímpeto da minha vergonha, corria a loura de raiva, esmurravam-me os pretos de excesso de poder, cuspiam-me os alemães de desprezo, riam-se os indianos de mim.
O homem que lia um livro sobre pássaros, seguiu para o terreiro do paço, onde acabou por se suicidar no rio tejo.
Em Santa Apolónia, levantaram do chão um chinês, que ainda jorrava sangue pela veia jugular. 

Nuno Miranda Torres

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