quinta-feira, 15 de maio de 2014

Visão do Inferno



Arrastava o corpo por entre as estevas, agarrando-o pelos braços, deixando os pés fazerem uns sulcos que, com o passar repetido dos corpos, ficavam cada vez mais fundos. Quando chegaram perto do pinheiro manso, Francisco prendeu o braço do homem, que violara a sua irmã, a uma árvore; enquanto limpava os restos, dos demónios anteriores, de cima da pedra mármore, local sagrado onde costuma mostrar o Inferno às almas pecadoras. Estava escuro, a vegetação cobria quase por completo o local do julgamento, a luz da lua entrava apenas por uma deficiência da copa do enorme pinheiro que os apadrinhava. Esse pedaço de luz, incidia precisamente em cima da pedra mármore. O homem ainda preso, mexeu-se e gemeu, levando a mão disponível à cabeça que lhe doía horrores. Francisco tirou da mochila um maço, adormecendo-o novamente com uma violenta pancada na cabeça.

Estava na hora de fazer a cama. A pedra era coberta de sumaúma e folha de pinheiro seca. Por cima, as cartas e os desenhos feitos pela sua irmã. Ao centro uma fotografia dela, para que o julgador, também ele visse, a singeleza do seu olhar, antes da violação. Pegou no corpo do homem, colocou-lhe uma máscara de ferro, para lhe preservar a cara intacta, amarrou-o com umas correntes de ferro e enquanto o deitava sobre a pedra, acordou-o. A máscara de ferro tinha uma pequena abertura na frente, para que Francisco pudesse gozar as várias expressões de dor, daquele demónio.

O homem pedia incessantemente clemência. Francisco rezava, enquanto colocava um rastilho de pólvora nos sulcos. Da mochila tirou um manuscrito com a descrição do primeiro segredo de Fátima e pregou-o no tronco do pinheiro. Leu-o em voz alta:

Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados neste fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas saíam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graças à nossa boa Mãe do Céu, que antes nos tinha prevenido com a promessa de nos levar para o Céu. Se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.”
 

Pediu perdão por aquele pecador e acabou por rezar a Nossa Senhora de Fátima, enquanto pegava fogo à pólvora que estava nos sulcos. Francisco olhou o homem pela única abertura da máscara de ferro e sorriu, ao mesmo tempo que se benzeu. O homem deixou de gritar, e as chamas acabaram por reduzi-lo a pó. A cabeça foi pendurada num pau, junto das outras.

Francisco sentou-se num tronco cortado e deixou-se levar pela promessa que um dia o levariam para o céu. 

E.M. Valmonte 

fotografia de E.M. Valmonte

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