sexta-feira, 23 de maio de 2014

Sítio


precisar do sítio daquele ser

de recordar o primeiro beijo

no sítio de esperar, o ensejo

do sítio, ou do próprio querer



sem sítio, a memória esquece

a luz, o tempo e as horas perdidas

daquele sítio, encontram-se as vidas

dum sítio sem vida, que adormece



sem sítio, o homem perece

pela recordação de si próprio

morrer num sítio que não merece



depois do sítio, encolhe a alma

na escolha da morte, que sem sítio

resta a sorte, no lugar de vivalma

E.M. Valmonte 


Agradeço à revista literária Sítio e ao blogue BranMorrighan pelo sítio que me deram.

domingo, 18 de maio de 2014

Assassinos natos



Descalço-me, tiro a camisa suada e deito-me no sofá. Passo alguns momentos em puro deleite. Não existe barulho, o sol entra envergonhado por entre os buracos dos estores e a sala está fresca. Fico apenas a aproveitar a solidão, como ela deve ser aproveitada, sozinho.
Os olhos semicerram, mas não quero dormir. Inspiro fundo e consigo absorver os cheiros dos livros esquecidos na estante. Parece que perco a solidão, quando me vêm à cabeça as personagens daqueles livros. O cheiro a sangue, vindo dos policiais, aguça-me a vontade de matar sem razão; aquele matar por diversão, sem despojo nem ódio.
Fecho os olhos, tentando que o corpo se esqueça desta vontade, mas agora que o instinto começou a correr pelo sangue, será muito difícil voltar a adormecê-lo, sem matar.

A campainha toca. É publicidade.






Que bom.


E.M. Valmonte

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Visão do Inferno



Arrastava o corpo por entre as estevas, agarrando-o pelos braços, deixando os pés fazerem uns sulcos que, com o passar repetido dos corpos, ficavam cada vez mais fundos. Quando chegaram perto do pinheiro manso, Francisco prendeu o braço do homem, que violara a sua irmã, a uma árvore; enquanto limpava os restos, dos demónios anteriores, de cima da pedra mármore, local sagrado onde costuma mostrar o Inferno às almas pecadoras. Estava escuro, a vegetação cobria quase por completo o local do julgamento, a luz da lua entrava apenas por uma deficiência da copa do enorme pinheiro que os apadrinhava. Esse pedaço de luz, incidia precisamente em cima da pedra mármore. O homem ainda preso, mexeu-se e gemeu, levando a mão disponível à cabeça que lhe doía horrores. Francisco tirou da mochila um maço, adormecendo-o novamente com uma violenta pancada na cabeça.

Estava na hora de fazer a cama. A pedra era coberta de sumaúma e folha de pinheiro seca. Por cima, as cartas e os desenhos feitos pela sua irmã. Ao centro uma fotografia dela, para que o julgador, também ele visse, a singeleza do seu olhar, antes da violação. Pegou no corpo do homem, colocou-lhe uma máscara de ferro, para lhe preservar a cara intacta, amarrou-o com umas correntes de ferro e enquanto o deitava sobre a pedra, acordou-o. A máscara de ferro tinha uma pequena abertura na frente, para que Francisco pudesse gozar as várias expressões de dor, daquele demónio.

O homem pedia incessantemente clemência. Francisco rezava, enquanto colocava um rastilho de pólvora nos sulcos. Da mochila tirou um manuscrito com a descrição do primeiro segredo de Fátima e pregou-o no tronco do pinheiro. Leu-o em voz alta:

Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados neste fogo, os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas saíam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graças à nossa boa Mãe do Céu, que antes nos tinha prevenido com a promessa de nos levar para o Céu. Se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.”
 

Pediu perdão por aquele pecador e acabou por rezar a Nossa Senhora de Fátima, enquanto pegava fogo à pólvora que estava nos sulcos. Francisco olhou o homem pela única abertura da máscara de ferro e sorriu, ao mesmo tempo que se benzeu. O homem deixou de gritar, e as chamas acabaram por reduzi-lo a pó. A cabeça foi pendurada num pau, junto das outras.

Francisco sentou-se num tronco cortado e deixou-se levar pela promessa que um dia o levariam para o céu. 

E.M. Valmonte 

fotografia de E.M. Valmonte

terça-feira, 13 de maio de 2014

Depois de uma guerra




    
Os homens, depois de uma guerra, precisam de amor. Quando o sol se começa a empalidecer, vai com ele também a vontade de estar sozinho. Por muita coragem que brote dos homens, todos precisam de um lar. Precisam de um ventre onde deitar a cabeça e de alguém que lhes estremunhe os cabelos, que outrora dançaram ao vento, enquanto se limpam as feridas.
Os braços abraçam os filhos com força. Sente-se a felicidade, nas gargalhadas das crianças. Os homens têm sempre medo que a felicidade se acabe. É por isso que abraçam com mais força.  As espadas trespassam os homens. As palavras matam famílias. No silêncio, saboreia-se a mais límpida felicidade…

E.M.Valmonte

fotografia de E.M.Valmonte