sexta-feira, 27 de junho de 2014

Tenho inveja do teu BMW



O meu amigo Varela tem setenta anos. Gosta de mulheres, porque sempre gostou, não porque chegou aos setenta anos. Quarenta e sete dias depois de a sua mulher morrer, conquistou uma mulher mais nova. Varela ainda tem erecção, e prometendo um bom jantar de marisco às senhoras com quem vai partilhando a solidão, elas ainda gritam desalmadamente quando ele as penetra, criando nele a expectativa de que, ainda consegue dar genuíno prazer a uma mulher. Ele sabe que não lhes consegue dar prazer, mas desde que os outros julguem que ele dá, então é querer vê-lo, de sorriso maroto estampado no rosto, a passear pelo bairro.  

Apenas ele sabe que as sirenes, por vezes, não passam de sirenes ruidosas. 

E.M.Valmonte

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Partes de um epitáfio

Se eu não sentir a queda, ninguém me dirá que eu caí


E.M.Valmonte

sábado, 21 de junho de 2014

Por ter passado tanto tempo, a maionese azedou

Parece que a noite
se encarrega de esconder
a vergonha, do que se afoite
mesmo não tendo o que se ser
falta apenas o barulho
das tampas dos caixotes
de onde se tiram verdadeiros lingotes
de espinhas e molho mostarda
de carne mal mastigada
ao infortúnio da vida, mal passada
lamber depois de sorver
as últimas gotas de gasosa
seria então mais que viçosa
a cabeça de gamba não chupada
numa porção disforme de maionese
falta uma mulher de diocese
um brinde, o prazer que provinde
do sexo, sem nexo de ser
à bruta, que não há fruta
a maionese azedou
do tempo que passou
entre o luxo e o lixo
o alto e o baixo
o rico e o pobre
o fresco e o estar podre
por ter passado tanto tempo
a maionese azedou
ficou também ela estragada
o homem quase morreu
sem dar por isso, ou quase nada
acabou por sentir uma pontada
que o estatelou no chão
de onde nunca saiu
o cabelo estremunhado
deixava cair, o desmazelado
que o homem se sentiu
todo torto, talvez morto
alguém que lhe chupe a cabeça
que morto, nada há que o impeça

E.M. Valmonte


fotografia de E.M. Valmonte


quinta-feira, 12 de junho de 2014

Se fosse coxo, devolvias-me à terra?







Depois de o abrir, vi que a capa dura estava ligeiramente amarrotada. Tinha levado uma agrura da vida. A multidão gritava - «Devolve, devolve, devolve» e eu, precipitadamente, pensei nisso. Se tem defeito, é para devolver. E não é isso que fazemos todos, a tudo e a todos que têm defeito?

Mas este livro, tal como a mulher que amo, é de apenas um exemplar e difícil de conquistar. Li as duas primeiras páginas, como se tivesse a dar o primeiro beijo, no campo de ténis, atrás da escola primária do avião. E não me poderei apaixonar em apenas duas páginas e um beijo?


A multidão continuava em uníssono- «Devolve, não presta, devolve, devolve». 


Levei o livro para casa, ainda que, com aquele sentimento que eu mereceria melhor. Mas também não mereceria melhor dono, este pobre enjeitado? Estaremos bem um para o outro na desilusão, mas também na devoção e no amor. Embora com essa capa dura desfigurada, tenho a certeza que não serás menos Herberto Helder. E também não darás menos prazer. E porque te salvei da fogueira, será que me podes dar um segundo beijo?

E.M. Valmonte


terça-feira, 10 de junho de 2014

Fim de tempo

há um tempo
que passa
pelos homens
sem tempo
escondido nos bolsos
coçados do tempo
de tanto tempo
que por lá passou

há um resto de tempo
que não passa
porque passou
não passa
porque doeu
a passar
… devagar

falta o fim
do tempo que falta
a chegar
ao

fim

E.M.Valmonte

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sara e o deserto das feridas lambidas




por que não sara?
lambendo-te as feridas
abertas
por que não sara?
se arde e se dói
se sarasse não havia sangue
que ainda escorre
que suja o chão
por onde passaste, sara
esta dor que incomoda
por que não, sara?
se a sara não quiser
então o amor não fechará
o que resta dele
não sara o amor pela sara
não sara, pois não, sara?

E.M. Valmonte

terça-feira, 3 de junho de 2014

Rir de um palhaço



    Sabia que daquela maneira, não te conquistaria nunca. Seria muito difícil que te fizesse desviar o olhar, mesmo que eu te olhasse incessantemente, em busca daquilo que outrora foste. Se alguma vez me olhasses, mesmo que de relance, seria fruto da chacota dos outros e não da tua vontade de me contemplar. Do fundo das ciclópicas gargalhadas dos teus pares, olhaste-me, não nos olhos, mas superficialmente, como habitualmente se costuma olhar para um palhaço. E também te riste… mas não gargalhaste. O tempo parecia ter parado. Tirei uma flor da lapela e entreguei-ta. Tropecei, caí e desmoronei também o meu disfarce. Todos riram. Afinal eu era um palhaço e os palhaços têm que fazer rir, cair, desmontar as angústias dos outros e as culpas das crianças. Só não podem amar, que isso é coisa séria. Deixaste a flor em cima do banco. Também eu a deixei lá, porque não preciso dela para ser palhaço. Servia apenas para ser mais fácil amar, mas para ser palhaço, não é preciso nem flor, nem amor.

E.M. Valmonte