sexta-feira, 13 de maio de 2016

O cume do peregrino

Os pés deixam de ter o chão
da fé que deixa de ter pé
afogam-se ambos na imensidão de estrada
que leva pessoas para lá de nada

dor, muita dor

quem me soletre a dor
da palavra desistir
que ma soletre mais devagar
que a coragem de querer parar

promessas de pequenos mundos
segredam forças aos fundos
fundos de homens curvados
aos deuses desinteressados

dor, e mais dor

lambem-se as feridas
enxugam-se as derrotas
das lágrimas, a fé que progrida
que não seguir, é fazer batota

quando dói, ri
que rir, tem mais sabor
sabe mais doce que a dor
de não saber a nada

caminhar sobre o sangue
de rasto indelével
vomitam os corpos, a fé prossegue
no vento, na chuva e no indecifrável

perguntar afronta a fé
força que o caminho faz-se a pé
de pena, de pé, a fé na arena
uma chegada em sangue que serena

salvam-se filhos
curam-se doenças
agradecem-se as crenças
de não saber, para lá das incertezas
se os caminhos dão em trilhos

ou este nada que inventa tudo
não passa de um simples sacrifício
de dar dor ao corpo
dar voz ao vício
persistir no princípio
ao morto com voz de mudo


?

não perguntes
que perguntar não chega
nem ao espírito nem ao corpo
e chegar, chegar sossega
sossega e diminui
não rastejes que não flui
mais pequeno cabe mais
dentro do que é para caber

chegar sossega o que de mim
não sabe que chegou ao fim
enobrece o que de mim
não teme o chegar do fim


nuno miranda

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Caçador de ampulhetas

Virou a esquina e nunca mais ninguém o viu. Caçava o tempo em pequenos frascos de vidro. Como se dependesse dele o seu próprio tempo de viver. Ele gostava de controlar o tempo que passava, a passar o tempo.
E desapareceu, não como desaparecem os dias, mas como desaparece o som de um transístor. Como aquele transístor que ele usava para ouvir o futebol. A ouvir, o tempo demorava mais tempo, que o mesmo tempo que se demorava a ver. A antena hirta junto ao ouvido ajudava o tempo a demorar-se mais. Infinitamente demorado, como se se aperaltasse de pompa e circunstância, fazendo gala de se demorar, fazendo esperar o tempo, o tempo que fosse necessário, para poder gozar aquele último tempo de viver.

Guardou a última ampulheta. Virou-a e esperou… como se esperar fosse uma virtude dos homens. Não soube esperar pelo fim da ampulheta. A filha voltou a virá-la, revezando o destino de vez em quando, que a morte não sabe esperar.
Homem de agrados, de sorrisos e rodopios, sabia que a fina areia continuaria a submergir, à mesma velocidade que a sua doença lhe comia as entranhas. Quem acabaria primeiro?

O transístor começara a roufenhar. As palavras interrompidas por grunhidos tornaram imperceptível a voz do comentador. Batia-se com o transístor na palma das mãos, achando que ele próprio ganharia vida com aqueles batimentos. As pilhas, esgotadas de vida, trautearam de morte o velho transístor.
O último grão da fina areia passou pela garganta da ampulheta e do velho transístor não se ouviu nem mais uma palavra. Um homem é feito dos seus pertences e deste homem, que não conseguiu controlar o tempo, restou um velho e mudo transístor que apenas precisava de uma vida recarregada.

A este homem não conseguimos trocar as pilhas. Também dele não se ouviu nem mais uma palavra, nem mais um agrado, nem mais um sorriso ou rodopio. Morreu… a tempo de ver que o tempo dos homens não se pode virar ao contrário e começar de novo.