segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 14 (31.08.2015)

Até amanhã!

Nunca as palavras fizeram tanto sentido. Nunca os sentidos me calaram tanto as palavras.
Há toques, retoques, ambições, desilusões, há pessoas, virtudes, sarilhos, há mais pessoas e antes de mim, os filhos.
Uma mão sobreposta numa pequena cabeça, de onde submergia um manto de cabelo de seda. Os olhos abertos, pediam carinhosamente o afecto. Um dedo que ia deslizando verticalmente na pequena palma de testa. Os olhos iam-se fechando à medida que o dedo lhe ia indicando o caminho. Os sussurros ao ouvido marcavam indelével o amor que se tem por um filho. O que lhe sussurrei é um segredo nosso, que levará no cerrar dos seus olhos.

Nunca as palavras foram tão difíceis de escrever. Nunca os sentidos me gatafunharam tanto os cadernos em branco.
Cheiro-te antes de me despedir. Inspiro-te e espero que isso me inspire. Tentarei não respirar mais até ao nosso reencontro. Este respirar ofegante que me gasta o teu cheiro.

Hoje é ainda uma genuíno amor unidireccional e sabes lá o que isso é bom para nos amarmos a nós próprios. Amanhã saberás o que é amar para além do regaço da mãe e do fechar de olhos do pai. Amanhã saberás amar, ainda mais que hoje.

Até amanhã, filho! 

Nuno Miranda de Torres


domingo, 30 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 13 (30.08.2015)

Canguru


Mais bonito que ver um filho deitado no peito de uma mãe, como se toda a sua prematura vida tivesse sido feita ali, é ver a dedicação de uma mãe, aflita, em cuidar do seu filho, como se toda a sua vida tivesse sido encaminhada para ali.

É do sangue. Não cheira a sangue, mas sente-se o correr nas veias. Eles sentem-se um ao outro como se a vida dependesse daquele contacto.
Pele com pele, coração com coração, o calor ensandece de tanto aquecer. Os miúdos crescem e tornam-se maduros. As mães choram, mas tornam-se futuros. Os pais também choram, e de emoção, tornam-se mais duros.

Ele abriu os pequenos olhos de amora. Procurou as sombras da mãe. Ela sussurrou-lhe ao ouvido, o caminho de se encontrar uma mãe. Descansado, voltou a aninhar-se naquele lugar de onde nunca devia ter saído.

Foi assim que continuaram a felicidade, pela tarde fora. 

Nuno Miranda de Torres

sábado, 29 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 12 (29.08.2015)

Ser capaz

Hoje, pela primeira vez, falaram-me em levar o meu filho para casa.
Não havia nada no imediato que eu desejasse mais, mas imiscuiu-se em mim um pânico interno, que me fez paralisar as pernas durante grande parte do dia. Foi medo de falhar nos cuidados primários. Foi medo que ele se venha a engasgar. Foi medo que se repita o pneumotórax, foi medo de não ser capaz.
Foi medo aquilo que senti, o mais puro dos medos que os homens sentem, quando são egoístas.

O olhar do meu filho mais velho disse-me que os pais devem ser fortes, devem combater os dragões e salvar as princesas; dar o corpo às balas, atravessar os mares mais inóspitos e nunca, mas nunca, devem deixar ninguém para trás.

O que eu dava para ter a coragem de uma criança.

Aprendi que os homens conscientes podem ter medo… os inconscientes devem ter medo… e que eu ainda não tive a oportunidade de me classificar…

e os pais… matarão os papões, os mauzões, os monstros e os medos. E um pai de verdade…claro que é capaz…


- o meu pai é sempre capaz! – disse um filho de um pai capaz

Nuno Miranda de Torres

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 11 (28.08.2015)

Aperaltado


De barba imaculadamente feita, banho tomado e um cheiro neutro no pescoço, que embora neutro, impressionava pela suavidade e bom gosto.
Vesti roupa lavada e embora a idade me tenha levado parte do cabelo, penteei meticulosamente o que me restava, efectuando um geométrico risco ao lado.
Olhei-me várias vezes ao espelho antes de sair. Coloquei creme hidratante na cara, tornando-a mais suave.
Endireitei os ombros. Doeram-me as articulações que há muito estavam habituadas à posição curvilínea e com pouco movimento.
Engraxei os sapatos e estreei umas meias de algodão.  

Olhei-me novamente ao espelho. Pareceu-me bem e adequado para o reencontro de hoje.
Provavelmente estaria de novo com o meu filho ao colo, e por isso, não poderia correr o risco de não estar no meu melhor.


Cuidamos de nós, na mesma medida em que cuidam da nossa alma.

Nuno Miranda de Torres

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 10 (27.08.2015)

Parar o tempo


Sei que as restantes pessoas do mundo continuam a respirar. Sei, porque as ouço e elas se fazem ouvir. A vida continua a respirar e o seu ofegar polipneico como que não me deixa sossegar; neste momento que eu precisava que a apneia do relógio badalasse apenas duas vezes por dia.

Hoje o tempo parou.

De braços sobrepostos imitando um ninho de cuco, recebi hoje, pela primeira vez, o meu filho no colo. Sem tubos, sem drenos e sem ventilador, foram apenas aqueles dois quilos de gente e eu, numa simbiose perfeita de dependência. Ele precisava do meu colo, eu precisava da vida dele. Enroscou-se como só um filho se sabe enroscar. Abracei-o, como só um pai sabe abraçar.

Hoje o tempo parou.


Pena que não me deixam ter tempo de parar o tempo para sempre, neste minuto em que ele se enroscou em mim.

Nuno Miranda de Torres

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 9 (26.08.2015)

De mãos dadas

Na última hora, o pequeno Tiago esteve agarrado ao dedo mais pequeno da mãe. Uma pequena mão, num pequeno dedo, mas uma cumplicidade maior do que aquelas duas mãos juntas conseguirão agarrar, durante uma vida inteira.
No final da hora, ela tentou despedir-se, soçobrando a mão na incubadora. Ele apertou com mais força e ela ficou…

…talvez agarrada a ele para sempre.

De mãos dadas é sempre uma forma bonita de se começar uma vida. Só acabará quando uma das mãos deixar de fazer força e apertar.


Só por esta hora de maternidade, já tudo valeu a pena.

Nuno Miranda de Torres

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 8 (25.08.2015)

O choro do silêncio

Hoje deixaram-no sossegado. Ao oitavo dia, também ele precisou de descansar.

Chorou em silêncio durante a maior parte do dia. O ventilador não o deixa emitir os característicos sons da dor. Por momentos, também eu gostaria que um ventilador calasse a minha dor. Tento, mas não consigo chorar em silêncio, que isso é tarefa para os magnânimos.

Nuno Miranda de Torres 

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 7 (24.08.2015)

Aquela mulher junta da incubadora



Passo cada vez menos tempo naquele hospital, não porque esteja a desistir, mas porque me vão faltando as forças de resistir. Nunca desistirei, mas terei o direito de baixar momentaneamente os braços. Sinto e sei que não tenho esse direito, mas a verdade é que eles não se erguem de maneira nenhuma. Nestes dias mais duros, resta-me a observação do que me rodeia.

Hoje, de longe, mais não fiz que admirar a coragem de uma mãe. Em pé, com dores, não largou a incubadora do filho. Falou com os médicos, opinou, nunca desistiu, chorou, chorou muito como os que têm a verdadeira dor, mas reergueu-se cada vez mais forte. Deu força aos humanos, pediu força aos sobre-humanos sem nunca largar aquele que mais precisou de si.
Invejei a força daquela mulher. Mulher de missões que fará o que estiver ao seu alcance, mesmo que nestes casos, o alcance não seja maior que o comprimento dos braços totalmente estendidos para o céu.

Levantei-me a custo e aproximei-me dela. Queria de certa forma estar perto desse alguém que não desiste. Os olhos tendem a trair-me, e a sensação de nebulosidade dificulta-me a percepção de tudo o que não é sonho ou ilusão.
Usei as mãos para lhe tactear a cara. Senti-lhe o ofegar da respiração e dela vinha uma confiança fortificada que só vem de uma mãe.



Mais perto dela percebi, que aquela grande mulher era a mãe do meu filho. E nesse instante relembrei-me conscientemente que a venero e o quanto gosto dela.

Nuno Miranda de Torres

domingo, 23 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 6 (23.08.2015)

Nova espécie

Trago para casa aquele cheiro a hospital. Não me sai das mãos, das narinas e de dentro de mim. Trago os apitos sonoros e os nomes das enfermeiras. Trago o esgar de preocupação das médicas e também a sensação de que se estão a tornar impotentes. Só não trago, o que devia trazer. Trago uma enorme sensação de culpa de me vir embora e essa custa a sair. Culpo-me até de respirar livremente, coisa que o meu filho não consegue fazer. 

Sinto-me mau pai pelo facto de vir para casa. Sinto-me mau pai de ver televisão. Sinto-me mau pai, porque de vez em quando consigo sorrir. Sinto-me mau pai…por ainda não ser realmente um pai de verdade.

Todos me dizem que é um processo lento, mas para mim já passou mais tempo do que eu acharia que conseguia resistir.
Sei mudar a fralda, sei jogar à bola, sei cuidar de feridas. Apenas não sei cuidar de um maldito pneumotórax que teima em não cicatrizar.

Os ombros encurvam, o pescoço baixa ligeiramente, os olhos afundam e os braços caiem inertes.

Talvez seja mesmo uma nova espécie de homem que aqui se inicia. 

Nuno Miranda de Torres

sábado, 22 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 5 (22.08.2015)

Clampear a destruição sucessiva de esperança



Hoje foi um dia melhor que o de ontem.
Apenas isso… um dia melhor que o de ontem
… e que para mim me parece tanto.

Um homem neste estado, aprende a anestesiar-se das derrotas. Pena que o corpo também não sinta as vitórias. Estado profundo de dormência de onde não ecoa coragem, nem depressão.


Das mamas das mulheres extraem-se nomes, notas, trejeitos, futuros e carreiras de sucesso infindáveis. Para elas é missão, para os médicos é leite e para mim é coragem desmedida. Tirar leite para um filho, sem saber se ele vai ser bebido, é cuidar sem retorno de gratidão.

Alguém tem que clampear a destruição sucessiva de esperança.

Hoje, alguém o conseguiu fazer.

Nuno Miranda de Torres

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 4 (21.08.2015)

O Quadro

Quase todas as pessoas vivem a sua própria sobrevivência ou a dos seus, como se contemplassem um quadro a uma distância de cinco centímetros. Distinguem-se as cores, mas não se percebem as formas nem os conteúdos.
Hoje decidimos chegar-nos uns metros para trás, em busca de perceber esta tela que se vai pintando, à medida que as lágrimas vão secando e nos deixam ver um pouco mais além.

Mesmo na mais pura das infelicidades, ninguém consegue chorar para sempre.

Fica o filho na trincheira, trago para casa uma mãe desconsolada. Embora desfigurado de peças, parece que o puzzle se começa a estruturar pelos cantos. Falta o miolo, falta o encanto de encaixar a última peça.


A casa estava fria e escura. Onde coloco esta alcofa vazia?

Nuno Miranda de Torres

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 3 (20-08-2013)

A montanha russa

As boas notícias parecem que duram minutos e as más duram dias inteiros. Agarrado ao oscilar do peito do meu filho, fixo-o como se fosse o meu próprio bater do coração.
Pelo orvalho, gritei de alegria porque o pulmão estava completamente expandido, dez minutos depois desenlaço-me das cordas que me envolvem em puro desespero. Colocaram hoje um segundo dreno no peito do meu filho, para aspirar um pedaço de ar mais pequeno do que eu preciso, para viver apenas mais um segundo.

E amanhã onde estarei? Em cima ou em baixo, nas nuvens ou enterrado?

Estarei onde me colocarem. Estilo marioneta velha, donde pendem fios esgaçados de impotência.


Estarei onde me colocarem…
Estarei onde o colocarem…

Nuno Miranda de Torres

Diário de um pai - dia 2 (19.08.2015)

A nave espacial

A luta pela sobrevivência, talvez seja a luta mais sem escrúpulos que se pode travar. São constantes as apunhaladas nas costas sem aviso prévio. São ataques de cobardia que os homens não estão habituados a enfrentar.

Agora imagine-se um pai a lutar pela sobrevivência de um filho. Esta luta, trincheira desgraçada que nos tira os sonhos, que faz chorar homens vergados pelo medo de não ser capaz.
Como é que se ama um filho atrás de uma incubadora? Não se toca, não se abraça, não se dá de mamar, não se põe a arrotar… não se sabe se vai viver, apetece-nos morrer. Ama-se chorando às escondidas.

Máquina do tempo desgraçada que nos projecta o futuro; o presente é um cone de luz intensa sem barreiras nem degraus.
A nave espacial está pronta para descolar. Liguem os tubos, controlem o oxigénio, as pulsações e as saturações. Coloquem a morfina e espetem um tubo no tórax para drenar esse maldito ar que foi para a pleura.

A nave arrancou.

Sabemos que viajamos nela, agarrados pelos polegares.

Nem sei a força com que me devo agarrar. Se ao menos soubesse o tempo da viagem. Tenho medo de me agarrar com muita força e não aguentar o tempo total da viagem. Tenho medo de me agarrar ao de leve e ser cuspido. 

Tenho medo. 
Tenho mesmo muito medo.


Nuno Miranda de Torres

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Diário de um pai - dia 1(18 08 15)

1.55 da manhã. Nem os gatos pretos atravessavam a travessura de sair à rua. Um carro veloz com dois espíritos atormentados pelo passado. Ela chorava, ele não vertia lágrimas há mais de dez anos, mas tinha uma grande vontade de morrer; de falhar de morrer, de não ser capaz de dar vida ao propósito da sua vida. Não fosse a família, um par de amigos e um cão sem uma perna, que provavelmente já se tinha matado há muito.
Nunca fora capaz de tirar uma vida. Hoje tinha aquela estranha pressão, de não poder deixar de conseguir dar vida, à sua vida.



Acelerou.




Chegou a tempo de ver viver. Chegou a tempo de parir o seu propósito de vida. Não fossem os filhos, uma mulher, um par de verdadeiros amigos e um cão de três pernas, que o homem já não conseguiria gerar mais homens.


Não fossem…


Que não seriam, mais que abraços apertados dos seus filhos. 




Nuno Miranda de Torres
[Orgulhoso pai do seu segundo filho, Tiago de seu nome, nascido no dia 18-08-2015, nessa madrugada que nem os gatos  pretos  quiseram patinhar os telhados de zinco.]









quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Foi lá para chorar

Sempre tivera medo de dormir. Como que a morte o empurrasse para baixo, sempre que os olhos se fechavam. Aprendeu a viver com aquela sensação de um dormir mórbido de morte. Ainda assim gostava de velórios. Gostava apenas dos velórios que não eram de chorar. Encontrava sempre pessoas conhecidas, fumava cigarros e actualizava-se nos mexericos da família. Sempre faltaram aos velórios, as genuínas lágrimas dos que choram. Embora inerte e desfigurado, o morto acompanha os seus amantes, dando-lhes um reconfortante sentido de eternidade. A morte, aparece ao som dos primeiros torrões de terra seca a ecoar na madeira tratada. Nesse ribombar gélido, surgem as primeiras lágrimas sentidas de quem foi ali para chorar. Uma luta entre David e Golias; um passado enterrado em veludo e um presente esculpido pelo sol, rijo e calcado por solas gastas de vida. Parece o fim, o princípio da morte. A ausência eterna da presença, sempre lhe provocou náuseas incontroláveis. Parece mesmo o fim.

Ontem emocionou-se ao ver uma filha a despedir-se de sua mãe, pela última vez. Via-se que aquela mulher sabia que nunca mais iria ver a carne que lhe compunha a cara. Sabia, que nunca mais a cheiraria ou lhe cofiaria os cabelos. Sabia, que nunca soube como é que tudo acabaria. Afinal não sabia que as mães também morrem, deixando os filhos órfãos de conduta.

Último beijo numa cara já decomposta.

Abraçou-a durante sensivelmente dois minutos e guardou na pele, todos os sentidos que um passado morto ainda lhe conseguisse dar. Forçava a memória a mantê-la viva. Cheirou-a pela última vez e ficou grata. Soube naquele momento, que guardaria para sempre aquele cheiro a alfazema.

Nesses minutos, chorou incessantemente de ser vazio.  
Também ele chorou. Ele era daqueles que foi lá para chorar.

Nuno Miranda de Torres