terça-feira, 21 de outubro de 2014

Príncipe dos demónios, senhor das moscas e da pestilência

de facto,
ajudar a acompanhar a morte
é parecido com mandar para norte
a sorte ao sul, que ao ficar estupefacto

disse-me o morto
que não existiam os anjos
os brancos e o outros marmanjos
e que ninguém lhe deu conforto

afinal não se caga nas nuvens
nem se anda todo nu
é mentira o medo de Belzebu
e de Deus, a submissão e as ordens

de não voltar a terra
-ai se eles sabem que depois de morrer,
é melhor não lhes dizer
ainda o mundo acaba em guerra

E.M. Valmonte

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A sorte da injustiça



O homem coxeava. Tinha um coxear de quem tinha dois centímetros a menos numa das pernas. Os olhos cruzavam-se num estrabismo mórbido. Falava ao telemóvel e dessa mão que segurava o aparelho, pendia um molho de chaves e um amuleto. As crianças fugiam dele enquanto gritavam. Os gritos não o deixavam comunicar com a única pessoa no mundo, que o amava. O homem enfurecia-se e andava mais depressa, quase correndo, embora com aquela sensação que ao tentar correr, estava permanentemente a subir pequenos degraus. Cansado de correr daquela forma estranha. Cansado de crianças. Cansado do mundo. E também deste mundo cheio de crianças que o obrigavam a correr daquela forma estranha. Quanto mais corria, mais as crianças gritavam. Mais ele corria. Mais elas gritavam...corria....gritavam...corria

Parou.

Gritava mais alto que qualquer criança, enquanto arremessava o telemóvel contra uma parede, desfazendo-o, ao mesmo tempo que desfazia a sua própria dignidade. Foi preso por dois polícias a pedido de um dos pais, de uma daquelas crianças, que gritavam tão alto que não deixavam ouvir a própria alma. 

O pai delator voltara ao vernissage. Voltara de forma triunfal, com o ar de um herói e de dever cumprido. Estes anormais a assustar as criancinhas. Abrira os braços acolhendo os amigos cheios de risos mordazes de quem acabara de aceder à imortalidade. Nos espelhos, refletiam as luzes intermitentes da urgência. No meio da intermitência, o olhar desviado de um estrábico, como que pedindo a morte divina daquele grupo de pessoas, que nunca souberam assustar criancinhas, mesmo que, de quando em vez, elas bem precisassem.
Perdera as chaves e o amuleto, quando lhe amordaçaram as mãos e os gestos, algemando-o para sempre à injustiça de se sentir um anormal. As chaves replicam-se. O amuleto é desnecessário, principalmente para um coxo que também é estrábico. A injustiça, crava-se no peito. É daí, do fundo desse lugar estranho, que nasce a vingança.

E.M. Valmonte

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Quase quase

A noite caíra, lentamente e de uma forma quase quase mortífera. Vinha polvorizada de um nevoeiro cerrado, o que me levou à experiência mais eloquente de quase quase cegueira. Os candeeiros hibernavam e os gatos pretos escondiam-se, não de mim, mas do esgar de mortandade que se sentia naquele beco. Uma pequena brisa levantara-se da esquina e percorria toda aquela rua, concedendo-lhe alguma sonoridade. Competia apenas com o ping ping de sucessivas gotas, provindas de uma caleira e que se incandesciam numa chapa de zinco, muito para lá de ferrugenta. Não se via nada. O olfacto tomava a liberdade de me mostrar caminhos inenarráveis. Cheirava a sangue, daquele sangue vermelho vivo, que ainda cheira a vida. E cheirava de forma abundante. Encostei-me, sentei-me e acabei por me deitar. Esperava que o tacto me respondesse àquela sensação de morte, que ali se vivia.

A que sabe um beco cheio de corpos mortos, cobertos de sangue?

Começara a chover. Sentira-a na cara, como agulhas afiladas que me estimulavam a dor. As grelhas dos esgotos escondiam as miudezas da noite, silvando a corrente a passar. Cheirava intensamente a ferro.

Fiquei sem saber a que sabe, a dor de doer, de quase quase morrer, daquele excesso de noite que escorreu pelos esgotos.

E.M. Valmonte