domingo, 29 de novembro de 2015

Novembro

Tens os dias contados Falta-te apenas um dia. Um singelo dia, do tamanho dos outros. Mas falta-te um dia de semana, provavelmente um dia de trabalho, e isso é mau para quem estará morto depois de amanhã.
Afinal de contas, duraste o que tinhas que durar, pelo menos o que a maioria das pessoas queriam que tu durasses. 

Podes morrer em paz.

sábado, 28 de novembro de 2015

sem palavras



que as palavras ditam os homens 
se isto é um homem
então que palavra tão extensa
me estenderá o querer
esquecer a pequenez deste ser 
de não o voltar a descrever

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Tomar banho antes do meia-piras

Naquele dia, Arménio não estava disponível. Tinha catequese até tarde. Naquele princípio de Outono, era apenas o António e o Jerónimo, de um grupo que sempre fizera esquecer a solidão e os medos. A dois, não se jogava ao berlinde, mesmo que a imaginação sempre fizesse esquecer o eco que vinha dos quartos. Alguém tinha que dizer “últimos”, “penúltimos” e “marralhões”, “cavalinho-branco” ou “estrela-do-universo”. Palavras de comando que delimitavam a ordem de começar a jogar. 
O Pedro e o Paulo foram com os pais buscar meio borrego à terra. Restava a Catarina, que o pai era comunista, e tinha um olho-de-boi lindo de morrer, mas tinha pouco jeito com os berlindes, embora uns olhos apaixonantes de quem gostava de brincadeiras de rapazes.
Os calcanhares de Jerónimo calcavam a terra até aparecerem buracos perfeitamente redondos. Era sempre Jerónimo que fazia os buracos na terra, que os calcanhares dele passaram por mais adversidades na vida e eram mais ásperos, próprios para aquele serviço. António, astuto por natureza, disse “últimos”, ainda antes de Jerónimo acabar o buraco do piras. Esqueceu-se António que naquele mundo ingénuo-arcaico do berlinde, dizer “últimos” não asseguraria a vantagem de jogar em último. Jerónimo, filho de um homem fabril e duro no trato, mas honesto, disse “penúltimo” de forma convicta e Catarina seguiu-o dizendo primeiro “marralhões”, emendando depois para “cavalinho-branco” por ser mais bonito e poético.

Os buracos distavam entre si, milimetricamente, o regulado e aceite universalmente como um palmo de criança. A ordem de jogo, ganha por justiça e honra era “últimos, marralhões, cavalinho-branco, penúltimo e estrela-do-universo”. António, agora menos confiante, arremessou o primeiro berlinde, que distou consideravelmente do primeiro buraco. Seguiram-se Catarina e Jerónimo, assim como seguiu aquela tarde, igual a muitas outras, irrompendo-se pelo escurecer do dia e da hora de sempre recolher a casa.
Fiquei por saber se acabaram o jogo. Prometia sagacidade ao início do meia-piras, para lá do piras, ao chegar ao matas. Abandonei-os quando a minha mãe me chamou para tomar banho. Discutiam sobre o tamanho do palmo de António no terceiro buraco. Nunca se entendiam quanto ao tamanho dos palmos.

Muitas vezes, mesmo muitas vezes não se acabavam os jogos. O rufia do Aníbal aparecia sempre ao fim da tarde, depois de varrer a drogaria do pai, e com o abafador (uma leiteira imaculada), abafava os berlindes mais pequenos dos outros, as ideias maiores dos outros e o resto das crianças que ainda existiam por ali.

Sorte que eu, sempre tomei banho mais cedo que os outros. 

sábado, 7 de novembro de 2015

Acordo à esquerda

Escrevo a uma mão. Como se de um recital de um meio pianista se tratasse. A outra mão, a menos importante das mãos, segura dez réis de gente, que dorme profundamente. A mão menos importante, segura naquilo que me faz viver e envaidece-se por isso. Reclama importância por dependermos dela. Reivindica cuidados futuros, ameaçando perder a força de repente, caindo-me a vida e este aconchego de cinco quilos, que tranquilamente me dá a paz de uma criança.
Enquanto se mantiver este impasse da mão esquerda, seguro-a com a mão direita, não vá ela boicotar a força e deixar cair o que mais importante há na vida. C o m a s d u a s m ã o s o c u p a d a s , a p e n a s s e c o n s e g u e e s c r e v e r a e s p a ç o s c u r t o s ,  e s p a ç a d o s d e i m a g i n a ç ã o.

Acordaremos que em diante as tarefas de segurar a faca, limpar o rabo e acenar quando for para dizer adeus, ficará sempre a cargo da mão esquerda. Será ela também a espaçar as palavras e a embalar os filhos.
Como não sei por quanto tempo durará este acordo, aproveito o tempo para olhar, sentir respirar, ouvir chuchar e aconchegar estes dez réis de gente, embalados por esta mão esquerda ávida de poder.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

O habitual

Gosto de chegar ao café da Beatriz e dizer apenas – o habitual – ou nem sequer dizer nada e dali a nada ter uma meia de leite directa e um pão com manteiga na mesa do canto ao pé da máquina do tabaco.
É fazer parte daquele café e da vida daquelas pessoas. Descodificar os trejeitos e fazer deles o nosso próprio diálogo. É saber que o Henrique, o filho da Beatriz, fez ontem o teste de matemática e que provavelmente daqui a uns anos estará ali a servir à mesa. É saber de antemão que a Beatriz se chateou com o Justino, apenas pela forma como o pão vem barrado com pouca manteiga.

Sou e sinto-me o cliente habitual. Aquele que acha que tem privilégios e que é constantemente gratificado com os produtos mais frescos. Aquele que no Natal não paga o café, e em tempos de bonança, tem direito a um bolo-rei. Aquele a quem guardam o jornal desportivo, intacto, para não estar amarrotado na primeira leitura do dia.

Eu também sou aquele café.


Estou farto de meia de leite e enoja-me o pão barrado de manteiga, mas não tenho coragem de inverter a minha própria essência. Esta maldita essência monótona de ser habitual.

domingo, 1 de novembro de 2015

Silenciar as campainhas

Dona Remédios esperou toda a manhã que a sua campainha tocasse. Na janela do terceiro andar, por entre as portadas de madeira, que há muito deixaram de proteger do frio e da solidão, ia espreitando cheia de esperança de voltar a ser criança. Valeu-lhe a memória das saias rodadas, as meias bordadas e as fitas no cabelo. Valeu-lhe as memórias do cheiro que vinha da terra, das nozes dos dedos nas portas e do respeito que se tinha aos mais velhos. Valeu-lhe a memória de um pão-por-deus feito de nozes, pão e passas que tanto custaram a passar.
Há muito que deixou de dar pão e vinho aos mortos. Os cartuchos de guloseimas esperavam boas novas. Os velhos deixaram de esperar boas novas, como os novos deixaram de as trazer.
Há muito que as cidades deixaram de ter campainhas. Há muito que as cidades deixaram de ofertar coisas a pessoas estranhas. Há muito que as cidades deixaram de ser das próprias pessoas.  

Ninguém tocou a campainha da dona Remédios. Ficaram por dar os cartuchos que mais não tinham que as suas memórias de outrora. Que mais não tinham que sorrisos prendidos ou suores de trabalhar no campo.
Ficaram os cartuchos de guloseimas por dar. Permaneceram as memórias de um pão-por-deus cravado à terra, colocado num saco bordado em linhas paralelas, que sempre lhe fizeram lembrar as linhas da vida, que fechavam em cima com um nó cego, como se da morte se tratasse.

Ainda bem que a morte não soa campainhas, como hoje não soaram as da dona Remédios. Ficou a vida por viver e os cartuchos de guloseimas por dar.