terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Caçador de ampulhetas

Virou a esquina e nunca mais ninguém o viu. Caçava o tempo em pequenos frascos de vidro. Como se dependesse dele o seu próprio tempo de viver. Ele gostava de controlar o tempo que passava, a passar o tempo.
E desapareceu, não como desaparecem os dias, mas como desaparece o som de um transístor. Como aquele transístor que ele usava para ouvir o futebol. A ouvir, o tempo demorava mais tempo, que o mesmo tempo que se demorava a ver. A antena hirta junto ao ouvido ajudava o tempo a demorar-se mais. Infinitamente demorado, como se se aperaltasse de pompa e circunstância, fazendo gala de se demorar, fazendo esperar o tempo, o tempo que fosse necessário, para poder gozar aquele último tempo de viver.

Guardou a última ampulheta. Virou-a e esperou… como se esperar fosse uma virtude dos homens. Não soube esperar pelo fim da ampulheta. A filha voltou a virá-la, revezando o destino de vez em quando, que a morte não sabe esperar.
Homem de agrados, de sorrisos e rodopios, sabia que a fina areia continuaria a submergir, à mesma velocidade que a sua doença lhe comia as entranhas. Quem acabaria primeiro?

O transístor começara a roufenhar. As palavras interrompidas por grunhidos tornaram imperceptível a voz do comentador. Batia-se com o transístor na palma das mãos, achando que ele próprio ganharia vida com aqueles batimentos. As pilhas, esgotadas de vida, trautearam de morte o velho transístor.
O último grão da fina areia passou pela garganta da ampulheta e do velho transístor não se ouviu nem mais uma palavra. Um homem é feito dos seus pertences e deste homem, que não conseguiu controlar o tempo, restou um velho e mudo transístor que apenas precisava de uma vida recarregada.

A este homem não conseguimos trocar as pilhas. Também dele não se ouviu nem mais uma palavra, nem mais um agrado, nem mais um sorriso ou rodopio. Morreu… a tempo de ver que o tempo dos homens não se pode virar ao contrário e começar de novo.