Virou a esquina e nunca mais ninguém o
viu. Caçava o tempo em pequenos frascos de vidro. Como se dependesse dele
o seu próprio tempo de viver. Ele gostava de controlar o tempo que passava, a
passar o tempo.
E desapareceu, não como desaparecem os
dias, mas como desaparece o som de um transístor. Como aquele transístor que
ele usava para ouvir o futebol. A ouvir, o tempo demorava mais tempo, que o
mesmo tempo que se demorava a ver. A antena hirta junto ao ouvido ajudava o
tempo a demorar-se mais. Infinitamente demorado, como se se aperaltasse de
pompa e circunstância, fazendo gala de se demorar, fazendo esperar o tempo, o
tempo que fosse necessário, para poder gozar aquele último tempo de viver.
Guardou a última ampulheta. Virou-a e
esperou… como se esperar fosse uma virtude dos homens. Não soube esperar pelo
fim da ampulheta. A filha voltou a virá-la, revezando o destino de vez em
quando, que a morte não sabe esperar.
Homem de agrados, de sorrisos e
rodopios, sabia que a fina areia continuaria a submergir, à mesma velocidade
que a sua doença lhe comia as entranhas. Quem acabaria primeiro?
O transístor começara a roufenhar. As
palavras interrompidas por grunhidos tornaram imperceptível a voz do
comentador. Batia-se com o transístor na palma das mãos, achando que ele
próprio ganharia vida com aqueles batimentos. As pilhas, esgotadas de vida,
trautearam de morte o velho transístor.
O último grão da fina areia passou
pela garganta da ampulheta e do velho transístor não se ouviu nem mais uma
palavra. Um homem é feito dos seus pertences e deste homem, que não conseguiu
controlar o tempo, restou um velho e mudo transístor que apenas precisava de uma vida recarregada.
A este homem não conseguimos trocar as
pilhas. Também dele não se ouviu nem mais uma palavra, nem mais um agrado, nem
mais um sorriso ou rodopio. Morreu… a tempo de ver que o tempo dos homens não
se pode virar ao contrário e começar de novo.