quarta-feira, 31 de maio de 2017

os meus olhos de hoje

Pena que a vida não possa parar sossegada, um minuto que seja, que o homem parece que deseja olhar para trás e para a frente ao mesmo tempo, apenas com o mesmo par de olhos com que nasceu. Se a vida não conseguir parar a vida do tempo, assim que o homem virar o pescoço para esmiuçar o passado, vem desse passar de passado a garganta que o engole de supetão, sem deixar tempo ao homem de estender a mão ao que estiver para vir.


Por vezes o passado é tão parecido com o que os olhos veem, que fechar os olhos talvez seja a coisa mais parecida com o parar a vida do tempo, mantendo-o, um minuto que seja, no presente.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Schiuuuuuu!

Se há coisas boas que a vida em conjunto nos deu, foi esta capacidade de saborear o silêncio e do mesmo silêncio que nos manda calar, enfeitarmos a vida lá fora com a luz e o som que sempre nos sobraram. Dizem lá na aldeia, perto da montanha, que quando se encontra alguém com quem saborear o silêncio, que se encontrou o amor de uma vida. E aqui estamos, a deixar a vida passar devagarinho por nós, devagar como nunca costuma passar, como passou desde que aqui chegou. 

Shiuuuuu!!!! 


Que nunca se acabe a regalia de conseguir silenciar o tempo que nos resta. 

domingo, 28 de maio de 2017

para norte

São capazes de imaginar o silêncio que é preciso para viajar para norte, sítio de rimas fáceis quer com a morte, quer com a sorte. Apenas o vento assobia no vidro entreaberto, como os lábios surdinam numa folha de papel, numa espécie de esgar apertado de quem sabe para onde vai sem nunca saber se é de lá que se vem. Ao longe, as luzes dos outros enfileiram a vontade de ir para onde vai a manada. Não sei se haverá sorte para tanta gente, sei que nenhum deles escapará à morte naquele dia de deixar de ser gente. A uns morre-lhes o corpo, a outros nunca lhes chegará a sorte de ter o espírito, que tanto jeito dá nesta coisa de tentar ser gente.  O céu vai despindo o azul, dando o mote à hora a quem não quer sortear a sorte e a morte. Esses que sigam para sul.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

o ardor de recordar

Faziam aos domingos à tarde como que uma espécie de calafetagem do coração. Faziam-no com uma chávena de chá quente, uma torrada com pouca manteiga, que sempre partilhavam, e com as mãos que escapavam à gordura juravam amor eterno, entrelaçando os dedos até que a tarde se cansasse deles. Fizeram isto todos os domingos, até ao momento em que o tempo lembrou ao homem que o tempo da mulher tinha chegado ao fim. O tempo tinha dispensado o domingo de ser tempo de aconchegar o coração, que ao que parece ao domingo confunde-se muitas vezes o amor verdadeiro com o doce de um pacote inteiro de açúcar dentro de uma chávena de chá. A morte dela tirou-lhe o coração e a vontade de beber chá e lamenta que só não lhe tenha tirado também a sorte de viver. 

Continua a viver aos domingos, continua a amá-la também e não só aos domingos, pedindo uma chávena de chá quente, duas xícaras e uma torrada. Não bebe nem come nada, que os domingos como que lhe tiraram o paladar. Passados vinte minutos sai do café que o traiu, deixando tudo intacto, que vinte minutos são mais que suficientes para amar uma boa recordação, mesmo não lhe entrelaçando os dedos até anoitecer.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

portas de fechar

Até parece que se entrassem pela tua porta de fechar para implantarem o medo, te escondias e te abnegavas de ver o deitar do sol, sem espreitar pelas farripas de estore que sempre te denunciaram.  Até parece que alguma vez te escondeste atrás dessa tua porta de fechar para que não te vissem do postigo, sem espreitar pelo óculo e tentar saber quem batia ou de tanto bater o que te queria.
Pois não parece que o mundo, pelo menos o dos outros, tivesse vivido este tempo todo sozinho e que tivesse escolhido o fundo mais fundo que esse teu mundo pode estar de ti, para todos os dias desaparecer quase-quase à mesma hora.



De tanto buraco feito na porta de fechar, buracos feitos de espreitar os outros mundos, deixaram retalhos na porta que deixou de ser apenas de fechar, retalhos que entram para implantar o medo. Até parece que te abnegavas de ver o deitar do sol…

quinta-feira, 18 de maio de 2017

metros escuros de um caminho

Faz a noite a cortesia de lembrar que não é por fechar os olhos que acabam os dias, que a escuridão até pode chegar, e de ser tão parecida com o breu da noite, até pode parecer noite sem nunca dar aquele medo que a noite dá.


Sabes, de ouvir dizer da noite, que algumas horas depois voltará a virar o sol, parecendo que se vira também a tortura de vaguear completamente às escuras. Devias saber, de ouvir dizer dos homens, que não é preciso fechar os olhos se àquele caminho nunca chegar um único veio de luz, nem mesmo um único veio de luz desavindo de um túnel, esperança torta que acaba morta com o chegar da noite.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

passo pequeno de passada larga

O passo é pequeno para aquilo que as pernas podiam galgar. Sempre foi pequeno desde nascença. Nunca pode ser maior, que a carga sempre sobrecarregou as costas e as oportunidades de ser mais e melhor. As costas direitas não vergam por ser pobre, não vergam por ser podre o cheiro a que cheira o “por mais que faças não há maneira”. E é esse passo pequeno que não deixa dormir o medo, não encaixa a esperança de um dia saber correr, mesmo que esse tal correr de passada larga, seja apenas uma forma histriónica de fugir de qualquer coisa. 

terça-feira, 9 de maio de 2017

não passam de migalhas de pão

A mim não me faziam parar de voar por insignificantes migalhas de pão atiradas ao chão. A mim não me faziam parar de voar, que a fome pode tirar o desejo, mas não me tira a dignidade. Lá de cima, de asas bem abertas, os pedaços de pão parecem maiores que o estômago, parecem mais bonitos que o céu e mais frescos que a brisa que vem do Norte. Tudo não passa da ilusão de querer tudo o que cai do céu e se desfaz na terra dos outros. 
O que levará estes incautos seres-tão-pouco-vivos a descerem à terra em voo picado, para se juntarem ao despique por pequenas e ressessas migalhas de pão, lançadas com desprezo para os pés de quem nunca voou? 

segunda-feira, 8 de maio de 2017

meia-vida

A meio do caminho, se é que se consegue fazer apenas metade de um caminho, começou a chover copiosamente. Por vezes a meio da vida, se é que se consegue saber o dia exacto do meio da vida, a chuva não deixa a vida sair de casa. Do bairro, vem o medo da solidão, vem o medo de nunca saber dizer que não, a meia-vida que teima em sair de casa, mesmo sabendo que de depois de molhadas é mais difícil o bater das asas. 

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Simplicidade

Começa a saber bem quando se aprende a saborear fácil. Enquanto os outros se enfartam, enquanto os outros se matam, é simples poder destravar a tranca da janela e irromper no mundo por ali, por onde nada se passa para além do cantar dos pássaros e do deslizar do riacho. 

O difícil é encontrar a simplicidade do saborear, e fazer do que parece quase nada, o muito que carrega a vida no simples contemplar de uma inesperada chuvada.