sábado, 19 de setembro de 2015

Bolo de chocolate

Caminho que não sabe
o destino, que não sabe
a rota que aperta, a manhã
que na hora se desperta
o caminho que não sabe
o destino, que não sabe
a cor da saia da dona Berta
o cheiro a que cheira
um bolo de chocolate
o cheiro a que cheira
poder amar-te
caminho que não sabe
o destino, não sabe
quando parar, não sabe
o que há para amar
o cheiro a que cheira
a verdade, na saudade
de um bolo de chocolate
a mentira da sina que trina
em poder amar-te
caminho que não sabe
se o passado existir, em mim
se o fim não se sentir, mais para além
do que nesse passado ficou, aquém
do resto que ficou de amar-te
as gerberas em manto, alergias
as lágrimas em pranto, de morrer
se eu não estiver farto, de viver
em bocados pequenos de vida
que outrora fizeram caminho
que de não saber o destino
não soube nunca morrer de amar-te
de cheirar aquele cheiro
hálito do primeiro beijo
o primeiro de ser verdadeiro
que sabia a bolo de chocolate

Nuno Miranda de Torres

domingo, 13 de setembro de 2015

Partes de um epitáfio

A morte, é a maior surpresa que a vida nos pode reservar 


Nuno Miranda de Torres

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A Carta

Eles namoravam sempre por carta, que a escrever ama-se mais profundo. Era a distância que não permitia um namoro de contacto. Era o respeito a um deus que não permitia um namoro de facto.
Ele fugiu da morte, toda a vida. Ela fugiu da sorte, como quem foge de morrer pelas mãos de um carrasco, que lhe matava sempre o amor.
Hoje teve que fugir da guerra. Não teve tempo de lhe dizer que fugiu. Que embarcou sem saber se existia mar para além da imaginação e da criação. Não crescem as crianças na guerra, não crescem os amores na terra.
Fugir… fugir para não…morrer… fugir…viver… sabe-se lá o que existe para lá desta fronteira… desta língua de terra entre viver e morrer.

Para onde te escrevo agora, amor?

Deixa-te estar a meu lado e não mais te vás embora.
Uma carta sem destino numa folha a mais de outono, que não quer cair da árvore. Um amor que parece vadio, numa noite dormida ao relento. Estas palavras esborratadas neste papel pardo, parecem um fardo, de quem habituado a amar à distância, parece imberbe neste amor sem terra própria.
Escrevo mil cartas, e envio-te para todos os destinos que conheço.

Não escrevo para a morte que a morte não te colheu. Não te escolheu que a morte não tem destino.

Não te esqueças de me responder. São apenas mil destinos e isso são lugares parcos deste nosso amor, distante.


Nuno Miranda de Torres

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Diário de um pai - dia 18 (04.09.2015)

Em nada existe um fim

Esta é a última folha deste diário. As últimas folhas são sempre pouco escritas, mas têm a pressão de apresentarem um fim para a história.
Estou contente de a escrever. Comecei este diário e troquei sempre os textos pela sensação de perda, que o olhar para um berço vazio me dava. Comecei, sem saber como acabaria.
Chorei muito e vi os da minha família chorarem muito.
Mas nas últimas folhas nunca se chora verdadeiramente. A capa é dura e não humedece as lágrimas.
Trazer à terra.
Salvar.
Cuidar.
E deixá-los voar.
Os filhos regressam sempre a casa.

Amanha serei mais homem. Pode ser que consiga unificar a família. E todos estão vivos e todos estão bem. Amanhã serei mais homem do que fui estes dezoito dias consecutivos.
Descansaremos hoje das trincheiras, que amanhã começaremos um novo livro. Temos que escolher o título e isso não e fácil, porque não o podemos alterar a meio.
Afinal as últimas folhas podem não ser… pouco escritas…como podem não ter que ter final nenhum, porque em nada existe um fim.

Nuno Miranda de Torres 





Nem uma última folha de um livro me chegaria para agradecer o que fizeram por mim. A minha mulher, deu-me coragem, o meu filho mais velho deu-me força de continuar a viver. A minha família chorou comigo e deixou-me chorar sozinho. O meu melhor amigo, deu-me amizade. Os meus outros amigos deram-me o que me faltava. Preocuparam-se comigo e com toda a minha família.
Os médicos e as enfermeiras deram-me o meu filho de volta. E isso é quase tudo o que cabe num coração de um pai.
É por tudo isto, que uma pequena folha em branco, mesmo que seja a última do livro, nunca será suficiente para vos mostrar a minha gratidão.

Obrigado!

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 17 (03.09.2015)

Lamber as lágrimas que escorrerem para o chão

Hoje limparam-te as feridas e arranjaram-te as cicatrizes das suturações. Arranjaram-te o corpo das maldades sofridas, que os corpos consolam as mães, quando os filhos regressam a casa. Parece que chegarás a casa, lá para o fim-de-semana. Já não vão a tempo de te secar as lágrimas. Essas verteram na alma e só num daqueles verões mais quentes é que poderão evaporar, de tanto que elas choraram.

Sofro por cada uma dessas cicatrizes que te decoram o corpo. Não te consegui livrar disso. E os pais sofrem quando não livram os filhos de sofrer. São marcas, que já não te doem e que talvez nunca me deixarão de doer. São marcas, que apenas passam do corpo. Constantes memórias que a vida pode ser sempre pior, do que a própria memória se pode lembrar.
Não te consegui livrar disso. Um dia saberás que não estava nas minhas mãos. Saberás que tê-las-ia amputado, se eu soubesse que não sofrerias um só segundo.

Mas não te consegui livrar disso.

Em casa também te limparemos as feridas. As do corpo e a outras que não sangram. As tuas e as nossas. As feridas limpam-se em família. Aqui saberemos de cor a cor do teu sangue. Lamberemos as lágrimas que escorrerem para o chão. Apanharemos os teus pedaços e saberemos uni-los peça por peça. Rejubilamos sempre quando a última peça encaixa.

Não te consegui livrar disso. Desculpa.


Resta-me abraçar-te e proteger-te com os braços. Ficaremos assim, até ao dia em que as tuas lágrimas já não escorrerem para o chão. Pode ser que eu morra, antes que isso aconteça. Quero que continues a caminhar em frente, sem olhar para trás e nunca deixes que as tuas lágrimas se voltem a estatelar no chão.Se isso acontecer, estarei lá para lambê-las.

Nuno Miranda de Torres

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 16 (02.09.2015)

O Pisco

Quando cheguei ao quarto do hospital, estavas vestido a rigor, quem sabe para receber de gala este teu pai que tanto te gosta de ver. Na janela do quarto, do lado de fora, um pisco embalava-te com uma generosa melodia.
Por serem os dois tão pequenos, admiravam-se, rodando a cabeça, cada vez que um se mexia. Pareceu-me uma dança de pequenos seres dependentes, que se pendiam um ao outro. Um voava, o outro sonhava. O pisco assustava-se com os teus movimentos, mas voltava sempre chilreando as últimas novas, próprias de quem voa e vê tudo lá de cima. Tu acalmavas sempre que ele chegava ao teu parapeito, e ensinava-lo a crescer e a cuidar da alma dos outros.
Habituado a histórias de cavaleiros e dragões, hoje começámos a escrever as primeiras letras de uma história de amizade entre um pássaro e um sonhador.


 Talvez por serem os dois tão pequenos, sonharam os dois tão alto. 

Nuno Miranda de Torres

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Diário de um pai à rasca - dia 15 (01.09.2015)

A Coroa

Dizem os ilustres que a coroa serve para coroar. Vivemos nós um pouco mais abaixo desse céu limítrofe dos deuses, em que a coroa serve para parar o tempo.
Solto-a da caixa e do aro, e o tempo deixa de envelhecer. É assim, que no meu relógio velho e cansado, atrasado e descompassado, ainda me sinto um rei, por mandar parar o tempo quando quero.
No reino das coroas e das coroações, ninguém sabe parar o tempo. Sabem vivê-lo, mas não o sabem parar.
E porque quererão, estes pobres camponeses, parar o tempo?

Porque quando se tem um filho nos braços, é bom que a coroa esteja solta, e que as horas não vivam os dias, como se os tempos não pudessem ser parados.

Dos reinos das horas a fio, apenas quero uma pequena coroa brilhante para coroar o meu pequeno príncipe, que agora, como dantes, está nos meus braços, sem que os minutos tivessem passado.

Nuno Miranda de Torres