segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Outono

As folhas ensombreceram. Acabaram por ensombrecer no Outono, depois deste Verão quente que lhes queimou as veias. As folhas caiam vagarosamente e juntavam-se todas no mesmo canto. A verdade é que naquele canto, o Matias arrancou as cuecas à Mafalda, penetrou-a com o consentimento dela e fatalmente engravidou-a. O pai da Mafalda partiu-lhe oito dos nove dedos que lhe restavam. Matias foi serralheiro aos catorze anos e perdera um dedo numa das serras da empresa do tio. As árvores, nuas, gargalhavam de puro sarcasmo. Aquele canto onde já se gerou vida, amontoava agora um monte de folhas mortas. Esperavam pacientemente que o vento lhes desse alguma pancada de vida, levando-as para algures, onde se pudesse ver a igreja e os velhos a comprar jornais. 

E.M.Valmonte

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Agarra o Dia - Sugestão de Livro


de um dos melhores escritores de sempre



Saul Bellow (Lachine, 10 de Junho de 1915Brookline, 5 de Abril de 2005) foi um escritor judeu nascido no Canadá e naturalizado cidadão estadunidense.
Recebeu o Nobel de Literatura de 1976. Premiado com o Guggenheim fellowship e a Medalha Nacional de Artes , viveu em Paris, onde escreveu The Adventures of Augie March.
 



domingo, 21 de setembro de 2014

Hallelujah







A melhor forma de se parabenizar um homem, acima dos outros homens

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Anzol de Prata

De tanto chorar para dentro, submergiu. Porque o desespero de um homem, mesmo que rijo de aparências reais, não consegue estancar a hemorragia de uma ferida aberta à estucada.
Submerso dele mesmo, debicava timidamente os anzóis que refletiam rasgos de prata, como que comunicando à superfície que existe uma quase vida, enamorada pela quase morte iminente.

Num espasmo de afoitamento, sentiu um rasgo frio no lábio superior e uma força que o puxava para o outro lado do desejo. Remexia os braços e as pernas, baloiçava o corpo, salvando-se morrendo devagar, cadenciando os movimentos ao natural baixar dos braços. Ser um homem submerso, dava-lhe o conhecimento que, quando mais lutasse, mais morreria. A luta acabara por acabar. No fim do esbracejar, ouviu-se um silvo, que afinal era para ser um grito, mas não houvera forças para tal excentricidade.

E.M. Valmonte

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Amava-a, como se amava um bom pão cheio de chocolate




A lancheira era de vime. Rangia à medida que os passos calcorreavam o caminho. Nas costas, levava um tipo de alforges onde cabiam os cadernos, as réguas e os livros. Mas essa parte nunca me interessou muito. A lancheira sim, cuidava dela como se cuida da memória. A minha mãe caprichava no lanche, o que fazia de mim, o centro das atenções naqueles intervalos de vinte minutos. Salazar sabia fazer escolas primárias, a minha mãe sabia fazer lanches e eu sabia trocá-los por beijos ou toques suaves em pequenos seios.
Ainda hoje, o ranger do vime me devolve genuínos sorrisos, só conseguidos pelos sonhos e pelas recordações. Trocava um papo-seco com fiambre por um beijo ou um croquete por um toque de raspão nos seios. Em Outubro desse ano, chegaram paletes de leite com chocolate de acesso gratuito a todos, o que me devolveu o ego às recônditas caves do enamoramento. Malditos comunistas, dizia a Dona Natália. E eu agora também o dizia. Eu que trocava pacotes de leite, por tardes de mão dada.
Ana Margarida era a miúda mais bonita da escola. Ela nunca quis o meu lanche, mesmo quando levei aquele pão-de-leite cheio de tulicreme avelã e seis bombocas de morango. Estava disposto a dar-lhe tudo. Tudo por um beijo. Nada de toques em seios, que ela não era uma qualquer. Amava-a, como se amava um bom pão cheio de chocolate.

E.M.Valmonte