quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Indelével sabor a...



Quando agarrei o varão, ele gelou-me as mãos e quis penetrar-me o gelo no coração como se desconfiasse que eu não era digno para aquele deslize.

Deslizei rápido, acossado pelo ensurdecer da sirene que palrava ao desespero dos outros.

Ainda vi a minha imagem refletida no cromado do varão. Estava gélida como aliás deve ser uma imagem refletida da coragem.



Entrei no camião tanque com a pressa de quem sabe que os segundos desolam a esperança. Coube-me a janela. Não gosto de me sentar à janela. À janela, os meus olhos são os primeiros a derreter inolvidavelmente o choro das pessoas que perdem o tempo que demora a vida. São vidros, e dos vidros apenas se podem esperar infundados reflexos e algumas imagens de nós próprios.



 As árvores ainda estavam de pé. Os homens estavam vergados. Eu estive de pé durante várias horas, mas acabei por me vergar. Algumas árvores acabaram também por cair junto de mim. Apaixonámo-nos e fundimo-nos. Dos meus olhos planavam as fagulhas. Pedaços de cinza que trazem pedaços de cada um. Pedaços de cada um que vão em toda a minha memória.

Grato pela vida dos outros. A gratidão dos outros não me retorna a vida, nem a das árvores que se vergaram comigo.

Quando me levantaram, desfiz-me em cinza. As lágrimas não apagam mais fogo. Os meus pedaços de fuligem entram na boca dos outros, causando um indelével sabor a…


efrem miranda

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Ontem, gostava de ter apreciado os alperces da dona Julieta



Ainda não sei quando morrer. Por enquanto, vou descendo o monte até à vila, nesta estúpida incerteza de não saber.

É de noite e de noite não se deve morrer. É verão e no verão não se deve morrer. É quinta-feira e os sinos começaram a tocar, desolando-me o coração, como se morrer fosse para uma quinta-feira.

Estou sozinho e nunca se morre sozinho.

Na vila, os sinos calam-se para mim, como se cala o resto da vila e o resto de mim.

Morri, mesmo sem querer fazê-lo. E sabiam que eu não o queria de noite, de verão, e tampouco a uma quinta-feira.


Ontem gostava de ter passeado na vila, jogado às damas com o senhor Álvaro, apreciado os alperces da banca da dona Julieta e quem sabe, roubado um beijo à Júlia, que há tanto tempo o ando para fazer. Sei que ela me olha com desejo. Eu teria sido o seu primeiro homem. Para mim, ela seria o meu primeiro beijo. Nunca o fiz, porque sempre tive medo. 
Também sempre tive medo de morrer.

efrem miranda

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Amam melhor as mulheres que pintam os lábios



de lábios pintados
pareces menos triste
de olhos fechados
parecem-te menos encantados
os punhos em riste
um país de ódios lançados
ao ego da besta

que coisa funesta
porque não me beijas?
desse teu  vermelho
tanto me beijas
como te revoltas

beija-me
vá lá!
beija-me com força
com língua se necessário for
deixa-me as marcas
que o tempo passou
deixa-me as memórias
que alguém se levantou

não se fazem homens
sem toques de lábios
pintados de vermelho
  
não se fazem homens
sem toques de lábios
pintados
  
não se fazem homens
sem toques de lábios
  
não se fazem homens
sem toques

amam melhor as mulheres
que pintam os lábios

efrem miranda

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Puro silêncio viciante

nunca o silêncio
será transbordante
as mãos que cultivam
submerjam as vozes
em vulvas banais

são tangentes ornamentais
ao centro do semblante
os mortos
não fazem silêncio
vivem nele
sem comungar

as máscaras agrilhoam o perdão
a festa dos estúpidos
não tem um fim
vive-se melhor de noite
sem a foice
de gume perfilado
atroando o histerismo

dos malditos sons…

da celebração do silêncio



efrem miranda