Nada mais tinha
que o velho carrossel, deixado ao abandono na última feira de São Quintino.
Deixara de ser rentável e ali ficou, à espera que um dia alguém o ligasse e ele
pudesse relembrar as repetidas gargalhadas de milhares de crianças, felizes,
pelo menos pelo tempo que demorava uma corrida. Dez cavalos, cinco aviões,
quatro girafas, oito xícaras giratórias e apenas um duende de gorro vermelho,
que convidava as crianças mais destemidas a girarem no seu cogumelo mágico.
Saul era o único ser, de carne e osso, daquele carrossel. Apanhava os bilhetes
por entre o esbracejar dos mais pequenos, de quem estava, por ímpetos momentos,
a parar o tempo, fazendo o favor de ser feliz.
Saul, estava
prestes a concretizar o seu sonho. O de voltar a girar o empenado carrossel. As
figuras estavam caquéticas, podres de aspeto e de alma. Pendiam sobre elas o
estigma da inutilidade. A imensidão de voltar a arrancar, para uma viagem sem
passageiros, soluçava por entre a dor de não tornar mais ninguém,
verdadeiramente feliz. Ninguém, para além de Saul, que vivera trinta anos
embalado pelas monótonas voltas, apesar de serem sempre no mesmo sentido. Para
ele, esta talvez fosse a última oportunidade de se sentir vivo.
As patas dos cavalos já não galopavam, os
aviões já não levantavam, às girafas, restava apenas uma cor amarelada já
desbotada. Os pescoços partidos, faziam das ecuménicas figuras, os mais banais montes
de madeira, usados para foguear já em final de vida.
Na mais pura
manifestação de humilhação, as xícaras giratórias chiavam ao rodar, como que se
chorassem prevendo a morte, avisando o resto da tripulação que não conseguiriam
salvar ninguém.
Apenas o pica
bilhetes, queria iniciar aquela viagem, mesmo não existindo nenhum bilhete para
recolher. Mesmo não havendo nenhuma criança para satisfazer. Mesmo não havendo
nenhuma figura, verdadeiramente de pé. Apenas Saul sentia, que rodando a alta
velocidade, poderia retardar o tempo, como se se girando tudo no sentido
inverso aos dos ponteiros dos relógios, o tempo poderia voltar para o tempo, em
que ele foi feliz. Para aquele tempo lá atrás, que virando apenas o pescoço, já
não se consegue ver.
As luzes foram
as primeiras. A música quis acompanhar, marcando apenas o compasso. O chão
começara a mover-se por debaixo dos pés de Saul, enquanto ele saltava entre
dois cavalos. As xícaras rodavam com dificuldade, a mesma dificuldade que
sentem os que tiveram passados brilhantes, cheios de fama, e presentes cheios de
falsos passados.
A velocidade do carrossel
aumentara, a felicidade de Saul também. Tudo o resto, foi caindo, como se cai,
quando se deixa de ser criança. Tudo o resto, foi caindo. Chegou ao fim, mais
hoje, do que ontem, o que afinal já tinha acabado.