quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O Carrossel (sem vida)

Nada mais tinha que o velho carrossel, deixado ao abandono na última feira de São Quintino. Deixara de ser rentável e ali ficou, à espera que um dia alguém o ligasse e ele pudesse relembrar as repetidas gargalhadas de milhares de crianças, felizes, pelo menos pelo tempo que demorava uma corrida. Dez cavalos, cinco aviões, quatro girafas, oito xícaras giratórias e apenas um duende de gorro vermelho, que convidava as crianças mais destemidas a girarem no seu cogumelo mágico. Saul era o único ser, de carne e osso, daquele carrossel. Apanhava os bilhetes por entre o esbracejar dos mais pequenos, de quem estava, por ímpetos momentos, a parar o tempo, fazendo o favor de ser feliz.
Saul, estava prestes a concretizar o seu sonho. O de voltar a girar o empenado carrossel. As figuras estavam caquéticas, podres de aspeto e de alma. Pendiam sobre elas o estigma da inutilidade. A imensidão de voltar a arrancar, para uma viagem sem passageiros, soluçava por entre a dor de não tornar mais ninguém, verdadeiramente feliz. Ninguém, para além de Saul, que vivera trinta anos embalado pelas monótonas voltas, apesar de serem sempre no mesmo sentido. Para ele, esta talvez fosse a última oportunidade de se sentir vivo.
 As patas dos cavalos já não galopavam, os aviões já não levantavam, às girafas, restava apenas uma cor amarelada já desbotada. Os pescoços partidos, faziam das ecuménicas figuras, os mais banais montes de madeira, usados para foguear já em final de vida.
Na mais pura manifestação de humilhação, as xícaras giratórias chiavam ao rodar, como que se chorassem prevendo a morte, avisando o resto da tripulação que não conseguiriam salvar ninguém.
Apenas o pica bilhetes, queria iniciar aquela viagem, mesmo não existindo nenhum bilhete para recolher. Mesmo não havendo nenhuma criança para satisfazer. Mesmo não havendo nenhuma figura, verdadeiramente de pé. Apenas Saul sentia, que rodando a alta velocidade, poderia retardar o tempo, como se se girando tudo no sentido inverso aos dos ponteiros dos relógios, o tempo poderia voltar para o tempo, em que ele foi feliz. Para aquele tempo lá atrás, que virando apenas o pescoço, já não se consegue ver.

As luzes foram as primeiras. A música quis acompanhar, marcando apenas o compasso. O chão começara a mover-se por debaixo dos pés de Saul, enquanto ele saltava entre dois cavalos. As xícaras rodavam com dificuldade, a mesma dificuldade que sentem os que tiveram passados brilhantes, cheios de fama, e presentes cheios de falsos passados.

A velocidade do carrossel aumentara, a felicidade de Saul também. Tudo o resto, foi caindo, como se cai, quando se deixa de ser criança. Tudo o resto, foi caindo. Chegou ao fim, mais hoje, do que ontem, o que afinal já tinha acabado.

E.M. Valmonte 



sábado, 29 de novembro de 2014

Folhas soltas



Sentado no banco de madeira
o tempo a aguardar o desenrolar da vida
a queda das folhas e o badalar
dos sinos, que o envie para casa

a imaginar as linhas aleatórias
pendem das caudas das folhas que caem
parece que experimentam esferográficas
em folhas de papel quedas de sentido

porque estão tão vazias as folhas
as ideias e os ideais
dos homens e dos demais
os que me querem furtar o tempo

e as folhas que caem
e as que permanecem por escrever
sem tempo, sem folhas
sentado num banco de madeira
a aguardar o desenrolar da vida
ou outra coisa qualquer
mais simples que viver ou esperar
mais simples que cair
como uma simples folha em branco
que sem destino
se prostitui ao vento
a mim que a espero, me cria algum desalento


E.M.Valmonte

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Cegueira

Mesmo ao domingo, Theodor passeava pelas melhores avenidas da cidade, de fato completo, gravata de seda do Panamá e sapatos Testoni. Também o domingo, o ex-dia da família, servia para passar pelo escritório para assinar uns papéis. Apenas mais uma aborrecida pilha de papéis, marcada indelevelmente pela vontade de reduzir operacionais, em prol da recuperação de mais um infalível banco.
Perto da sumptuosa entrada, um homem cego, espojado no chão, apenas com uma das mãos levantadas, pedindo os restos das migalhas das moedas, que rompem os bolsos de um qualquer fato Abercrombie.
Theodor chocalhou as moedas, desfilou-as na palma da mão, contando mentalmente o preço do prazer da humilhação. Atirou-as, como se leccionasse gratuitamente a essência do capitalismo.
-Quem quer dinheiro, que o procure…mesmo que não o veja, estando ou não estando, espalhado no empedrado - disse Theodor, gratificando o seu aluno ocasional.
O vagabundo, homem despedido do sistema bancário, cegueira provinda de uma catarata degenerativa, tresandava a mijo por falta de coragem, da boca, um hálito fétido a capitalismo mal curado.
-Esse seu capitalismo é uma bênção, senhor doutor – retorquindo em sinal de oração – pena que atraia tantos bandidos malfeitores – concluiu, como se conclui a insignificância.

E.M. Valmonte

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A última nota



Sully morreu duas vezes. Podia ter-se matado, mas não; habituado a uma vida libertina e cheia de excessos, decidiu suicidar-se. E se o suicídio já é morrer uma vez, ele que acabou por infligi-lo a ele mesmo, deu cabo da sua segunda vida, naquele mesmo instante.

Suicidando-se… ganhou aquele tempo de vida necessário, para escrever pausadamente a sua nota de suicídio. Dizia apenas...            


“Depois disto, nada mais me restará. Não verão mais o meu sorriso...nem as lágrimas do meu inverno.”


E.M. Valmonte

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Há 40 anos a parabenizar verdadeiros amigos


“A Brother may not be a Friend, but a Friend will always be a Brother.”
                                                                           Benjamin Franklin


 

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Fui eu prometer educar os filhos sob os desígnios da fé cristã



Hoje, o meu filho explicou-me a existência do universo. Explicou-me, como se explica alguma coisa complicada, ou seja, de forma simples. É verdade que as primeiras horas de catequese lhe provocaram a sensação de explicar tudo e a origem de tudo de uma forma, demasiado simplista. É verdade que os pais complicam sempre o que é simples, mas isto do universo é, para todo o universo, uma dúvida que realmente subsiste.

Que horas são?
São 17.30 – respondi
Onde estão as 17.30 horas?
No meu relógio
Onde está o teu relógio?
No meu pulso
Onde está o teu pulso?
No meu braço
Onde está o teu braço?
No meu corpo
Onde está o teu corpo?

Sei que o leitor deve estar enfadado, como aliás todos os pais nestas situações o estão, mas eu gosto de levar estas metralhadas de perguntas, geralmente até ao meu suicídio. Costumo cortar os pulsos, ou em dias solarengos, deixar-me cair do quinto andar.

O meu corpo está em casa – respondo abrindo a janela
Onde está a tua casa?
Está em Lisboa, que está em Portugal e que por sua vez está na Europa – resumi, não percebendo que resumindo, acelerava vertiginosamente a minha morte.

E onde está a Europa? – perguntou pacientemente, como se estivesse ainda a fazer a sua primeira pergunta

O sangue verte dos pulsos. Chovia copiosamente e certamente não esteve um bom dia para um suicídio por estatelamento em calçada portuguesa.
Acabei por perceber que Deus está imediatamente antes do Universo e que em vez de prometer educar os filhos sob os desígnios da fé cristã, deveria ter prometido educá-los sobre os desígnios da fé cristã. Acho que ninguém notaria e hoje teria uma vida mais descansada, com muito menos suicídios.

E.M Valmonte