terça-feira, 24 de março de 2015

HH









A Cabeça entre as Mãos (1982)
nalguma Vocação Animal (1971)
neste Retrato em Movimento (1967)
à  procura de um Lugar (1962)
profícuo Do Mundo (1994)
ou na Poesia Toda (1996)
como se fossem As Magias (1987)
ou fruto da Última Ciência (1988)
deslizante a dança d’ O Bebedor Nocturno (1968)
tal qual o pungente abraço da Cobra (1977)
ou seria o que resta d’ O Corpo o Luxo a Obra (1978)
A Colher na Boca (1961)
servindo Servidões (2013)
A Plenos Pulmões (1981)
regressado ao Húmus (1967)
numA Morte Sem Mestre (2014)
fecham-se os olhos à facada do Flash (1980)
que A Faca Não Corta o Fogo (2008)
desta Poesia – O Amor em Visita (1958)
que desta Poesia Toda (1981)
ou apenas do poeta Ou o poema contínuo (2001)
ficou-nos o poeta dos homens
um contrato assinado químico de um Poemacto (1961)
que não morre não deixa viver
neste Ofício Cantante (2009)
de sempre morrer, de vida




terça-feira, 17 de março de 2015

12 semanas e 4 dias

lá estavas onde devias estar
não sabias que sabíamos de ti
não sabias ainda sentir
o que eu já sentia
por ti
e por todos esses milímetros
translucências e órgãos
eu, queria apenas contemplar-te…
eles, procuravam as válvulas
os ventrículos e os teus medos
as mãos a alma contavam-se os dedos
fungavam franziam sabiam que faziam
eu, queria apenas contemplar-te…
viravam-te e devolviam-te
àquilo que eu queria que fosses
fiquei sempre quieto
sozinho a um canto, irrequieto
pulavam-me as inquietações
de homens bravios, às orações
que me afugentassem as preocupações
sei que me sentiste
e que gostaste de mim
baixinho, mesmo muito baixinho
que não podia fazer barulho
jurei-te amor eterno
sei que me sentiste
e que gostaste de mim
e o quanto eu gostei de ti

Nuno Miranda Torres

quarta-feira, 11 de março de 2015

Sobrevoar o centeio




Ela parecia um homem. À medida que se foi tornando mais velha, foi-se parecendo cada vez mais com o seu pai. Vinha do vale, de enxada apoiada no ombro e uma pequena saca de batatas equilibrada na cabeça. Sempre trabalhou no campo, durante toda a sua vida. Gostava do cheiro da terra e do centeio; era do chilrear dos tordos que tirava a melodia da sua vida. Quando passava pelas vinhas dos seus vizinhos, cuspia no chão, pois lembrava-se sempre do vinho e do seu marido, que o bebia incessantemente há mais de trinta anos. Casada há trinta e dois anos, a sua pele como que mapeava as sucessivas agressões sofridas. Talvez fossem as cicatrizes que a fizessem parecer um homem, quando a víamos ao longe. E também o bigode, contrastava com a doçura da voz.
Nesse dia, entrou em casa perto da hora do almoço. Ela sabia que estava atrasada e tentou não fazer barulho. A água já borbulhava, faltava descascar as batatas e cozer o peixe.
-tão o entulho? – inquiriu o marido com voz enlutada e um cheiro fétido a decomposição.
Ela destapou o tacho, averiguando o estado do cozinhado, aconchegando-o com uma real previsão cirúrgica.
- cinco minutos - disse ela, com a mesma voz doce de há trinta anos.

Sentiu uma dor forte perto da orelha, provinda de uma bofetada de mão esticada que a fez cair. Ela já adivinhava que a seguir vinham os pontapés na barriga e nas costas e se a bebedeira já fosse grande, mais tarde ou mais cedo, lá receberia uma pancada na cabeça.
A água do peixe entornava-se, o almoço atrasava-se, mas ela deixara de ter forças para caminhar, para cuidar e já há muito que deixara de amar.
Ele puxava-a pelos cabelos, insultando-a de cadela ordinária. Levantou-a, e agora de mão fechada, agrediu-a sucessivamente, esfacelando-lhe a sobrancelha. Ela caiu novamente, desta vez por cima do cabo da enxada, que lhe deve ter partido uma costela.
Conseguiu levantar-se a custo. De uma das mãos escorria sangue do golpe da sobrancelha. Na outra mão, segurava a enxada, enquanto olhava pela janela e ouvia o tal chilrear dos tordos, que sempre lhe deu vida e ao mesmo lhe tirava para sempre a liberdade de sobrevoar o centeio.

Num último espasmo das suas forças, enfiou a lâmina da enxada no crânio do marido, abrindo-o a meio, até sensivelmente perto do nariz. Jorrava sangue em catadupa, tal como jorrava a água do tacho do peixe.
Apagou o lume, retirou as batatas, a posta de garoupa e regou tudo com um fino e dourado fio de azeite.
Estava chateada, porque as batatas estavam espapaçadas e desfaziam-se. Cozeram tempo demais.
Olhava livremente pela janela aberta, para tirar o cheiro a ferro, por onde entrava um leve cheiro ao centeio, que bailava lá em baixo no vale. 


Nuno Miranda Torres

quinta-feira, 5 de março de 2015

Escondeu-se

Afinal a noite estava fria. Demasiado fria para amar, sem ser correspondido. Uma noite normal, para quem acabara de assassinar o seu padrasto com trinta e cinco facadas no bucho e mais uma em cada olho. Assim tinha a certeza que ele jamais voltaria a olhar para ela. Depois disso, não vira mais ninguém. Escondeu-se, sabendo que na sala de bilhar já todos sabiam quem tinha assassinado o bibliotecário.
Perto do quiosque do velho Banzé via-se a janela dela. As luzes estavam acesas e os estores ainda não tinham sido corridos.
Chegou-se mais perto, assobiou de forma trinada, como costumava fazê-lo para a chamar, quando faziam aqueles intermináveis passeios à beira rio. Ela assomou-se à janela, logo que o viu, riu-se e acenou-lhe, enviando-lhe três beijos seguidos. Despediram-se. Ele sabia que nunca mais a iria ver. Ela pensava que era apenas mais uma noite e que no outro dia, ele iria buscá-la à escola e voltaria a passear com ela à beira rio. Despediram-se. Guardou na memória aquele riso sem os dentes da frente. Levou com ele os três melhores beijos da sua vida. Escondeu-se na noite, à medida que ela corria os estores da janela, até não sobrar nenhuma fresta, nem de janela, nem de esperança.

Escondeu-se.

Nuno Miranda Torres

terça-feira, 3 de março de 2015

Marcador de livros, em pedra



marcador
que marcas o que é para marcar
marcas o que é importante
que importa saber para voltar
paciente, sossegado no meio
da metade que já passou
cheiras a folhas passadas
pelo tempo que acabou
marcador
que marcas o que é para marcar
no começar de novo
de voltar ao canto da memória
que ainda ontem a meio da história
me fez marcar o seu fim
marcador deambulante
da sorte de vaguear entre páginas
marcador diletante
eternamente a marcar o que fica para sempre
quieto
desse marcador de histórias
pedra lisa burrilada
a marcar o que fica para sempre
quieto


Nuno Miranda Torres