quarta-feira, 16 de julho de 2014

Detectives Selvagens

Sempre sonhei em ser detective, mas durante metade de toda a minha vida, fui um selvagem, sem eira nem beira. 
Agora que fiz parte integrante da primeira edição da revista literária, Detectives Selvagens, com o capítulo «Os poetas morrem quando se matam», sinto que me tornei menos selvagem.
A ideia base é muito boa, os editores sabem o que fazem e a revista está muito bem conseguida. Gostei muito da experiência. Foi simples, directa e sem rodeios. Espero ser convidado para a edição número cem.
Obrigado a todos.

Efrem Miranda

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Naquele tempo, virava aos cinco e acabava aos dez

As tardes eram passadas a jogar futebol, no quintal da avó do Caricas. A dona Fernanda, cabelo grisalho da sujidade do tempo, andar perro de quem carregou muitos tarros de água no Alentejo, sabia como agradar um bando de miúdos. Dava-lhes lanche e a jovial liberdade de acharem que são livres.
Das mochilas, imaginavam-se balizas, das tampas e das pedras, as bolas, e do Caricas, do Botas, do Ângelo, do Mata-Gatos, famosos jogadores cheios de sonhos e uma habilidade própria de quem chutava as caricas como bolas e a própria vida como um sonho inacabado. Nessa altura os jogos de futebol não tinham tempo. Nessa altura, virava aos cinco e acabava aos dez. O lanche da dona Fernanda era servido habitualmente no fim do jogo, mas podia ser no intervalo, tudo dependia de quantos golos estavam marcados às cinco da tarde. O neto Caricas, era quem decidia se os papos-secos eram recheados com manteiga ou se barrados com tulicreme; e isso dependia do resultado da equipa do Caricas, aquando chamados pela dona Fernanda.
O Caricas jogava com o Ângelo e o Botas com o Mata-Gatos. Ganhava quase sempre o Caricas e os papos-secos eram quase sempre recheados com tulicreme. Não sei se os outros dois não facilitavam constantemente, à procura de um lanche mais achocolatado; sabor que conheceram ali, pela primeira vez. Em casa, os frigoríficos ecoavam as dificuldades dos anos oitenta. Apenas ali, na casa da dona Fernanda, o futuro era servido com a calma de quem pode esperar pela morte sem pressa.
Um dia, o Botas estava inspirado. Exibição soberba, brindada com sete golos. O Caricas apenas conseguira marcar um. Nesse dia, virou aos cinco, mas não acabou aos dez. Nesse dia, nem sequer houve lanche, nem jogo de match point no ZX Spectrum, nem sequer aquela amizade genuinamente achocolatada, foi prometida para o dia seguinte. Nesse dia, abandonaram cabisbaixos, sabendo que a vaidade teria que ficar órfã de festejos. Nunca mais se viram. A dona Fernanda morreu mais tarde e aquelas crianças, cresceram a saber que as pessoas importantes, gostam de ganhar sempre, os jogos.


E.M. Valmonte

terça-feira, 1 de julho de 2014

Para quando as portas rangerem de dor

Sei que um dia tens de ir
pergunta antes se podes partir, depois de mim
sempre depois de mim
amputaria as duas mãos
para não te dizer adeus
sem mãos, acenaria a cabeça
dando-te uma mão cheia de nãos
ajoelhado, mão juntas
defuntas, pedindo a deus
que o que sobra do retalho
das memórias, das raízes e das gavetas
não se engavetem as que estão mortas
que se abram mesmo que ranjam
e que ranger seja apenas a dor das portas
abertas, ao fundo o estúpido espantalho
que no rir do enxovalho, devia era espantar
mesmo que a morte não tivesse asas
nem bico, nem cagasse do céu
devia espantar, não espantado
por estar morto, quando não há vento
essa pouca brisa do norte, que não trouxe
pouca terra pouca terra de sorte
quando te vi, partir sem mim
sei que um dia tens de ir
voltando ao princípio de ti e do poema
não te esqueças de perguntar antes
se podes ir,

se eu conseguir, 

vou contigo




E.M. Valmonte



Fotografia de E.M. Valmonte em "Na areia, não se enterram os filhos"