Dona Remédios esperou toda a manhã que
a sua campainha tocasse. Na janela do terceiro andar, por entre as portadas de
madeira, que há muito deixaram de proteger do frio e da solidão, ia espreitando
cheia de esperança de voltar a ser criança. Valeu-lhe a memória das saias
rodadas, as meias bordadas e as fitas no cabelo. Valeu-lhe as memórias do
cheiro que vinha da terra, das nozes dos dedos nas portas e do respeito que se
tinha aos mais velhos. Valeu-lhe a memória de um pão-por-deus feito de nozes,
pão e passas que tanto custaram a passar.
Há muito que deixou de dar pão e vinho
aos mortos. Os cartuchos de guloseimas esperavam boas novas. Os velhos deixaram
de esperar boas novas, como os novos deixaram de as trazer.
Há muito que as cidades deixaram de
ter campainhas. Há muito que as cidades deixaram de ofertar coisas a pessoas
estranhas. Há muito que as cidades deixaram de ser das próprias pessoas.
Ninguém tocou a campainha da dona
Remédios. Ficaram por dar os cartuchos que mais não tinham que as suas memórias
de outrora. Que mais não tinham que sorrisos prendidos ou suores de trabalhar
no campo.
Ficaram os cartuchos de guloseimas por
dar. Permaneceram as memórias de um pão-por-deus cravado à terra, colocado num
saco bordado em linhas paralelas, que sempre lhe fizeram lembrar as linhas da
vida, que fechavam em cima com um nó cego, como se da morte se tratasse.
Ainda bem que a morte não soa
campainhas, como hoje não soaram as da dona Remédios. Ficou a vida por viver e
os cartuchos de guloseimas por dar.
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