sexta-feira, 26 de maio de 2017

o ardor de recordar

Faziam aos domingos à tarde como que uma espécie de calafetagem do coração. Faziam-no com uma chávena de chá quente, uma torrada com pouca manteiga, que sempre partilhavam, e com as mãos que escapavam à gordura juravam amor eterno, entrelaçando os dedos até que a tarde se cansasse deles. Fizeram isto todos os domingos, até ao momento em que o tempo lembrou ao homem que o tempo da mulher tinha chegado ao fim. O tempo tinha dispensado o domingo de ser tempo de aconchegar o coração, que ao que parece ao domingo confunde-se muitas vezes o amor verdadeiro com o doce de um pacote inteiro de açúcar dentro de uma chávena de chá. A morte dela tirou-lhe o coração e a vontade de beber chá e lamenta que só não lhe tenha tirado também a sorte de viver. 

Continua a viver aos domingos, continua a amá-la também e não só aos domingos, pedindo uma chávena de chá quente, duas xícaras e uma torrada. Não bebe nem come nada, que os domingos como que lhe tiraram o paladar. Passados vinte minutos sai do café que o traiu, deixando tudo intacto, que vinte minutos são mais que suficientes para amar uma boa recordação, mesmo não lhe entrelaçando os dedos até anoitecer.

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