quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Quase quase

A noite caíra, lentamente e de uma forma quase quase mortífera. Vinha polvorizada de um nevoeiro cerrado, o que me levou à experiência mais eloquente de quase quase cegueira. Os candeeiros hibernavam e os gatos pretos escondiam-se, não de mim, mas do esgar de mortandade que se sentia naquele beco. Uma pequena brisa levantara-se da esquina e percorria toda aquela rua, concedendo-lhe alguma sonoridade. Competia apenas com o ping ping de sucessivas gotas, provindas de uma caleira e que se incandesciam numa chapa de zinco, muito para lá de ferrugenta. Não se via nada. O olfacto tomava a liberdade de me mostrar caminhos inenarráveis. Cheirava a sangue, daquele sangue vermelho vivo, que ainda cheira a vida. E cheirava de forma abundante. Encostei-me, sentei-me e acabei por me deitar. Esperava que o tacto me respondesse àquela sensação de morte, que ali se vivia.

A que sabe um beco cheio de corpos mortos, cobertos de sangue?

Começara a chover. Sentira-a na cara, como agulhas afiladas que me estimulavam a dor. As grelhas dos esgotos escondiam as miudezas da noite, silvando a corrente a passar. Cheirava intensamente a ferro.

Fiquei sem saber a que sabe, a dor de doer, de quase quase morrer, daquele excesso de noite que escorreu pelos esgotos.

E.M. Valmonte

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Carissima S*
      Por vezes faz falta a negritude. Lembra-nos que nem sempre os dias são resplendorosos.

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