quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Foi lá para chorar

Sempre tivera medo de dormir. Como que a morte o empurrasse para baixo, sempre que os olhos se fechavam. Aprendeu a viver com aquela sensação de um dormir mórbido de morte. Ainda assim gostava de velórios. Gostava apenas dos velórios que não eram de chorar. Encontrava sempre pessoas conhecidas, fumava cigarros e actualizava-se nos mexericos da família. Sempre faltaram aos velórios, as genuínas lágrimas dos que choram. Embora inerte e desfigurado, o morto acompanha os seus amantes, dando-lhes um reconfortante sentido de eternidade. A morte, aparece ao som dos primeiros torrões de terra seca a ecoar na madeira tratada. Nesse ribombar gélido, surgem as primeiras lágrimas sentidas de quem foi ali para chorar. Uma luta entre David e Golias; um passado enterrado em veludo e um presente esculpido pelo sol, rijo e calcado por solas gastas de vida. Parece o fim, o princípio da morte. A ausência eterna da presença, sempre lhe provocou náuseas incontroláveis. Parece mesmo o fim.

Ontem emocionou-se ao ver uma filha a despedir-se de sua mãe, pela última vez. Via-se que aquela mulher sabia que nunca mais iria ver a carne que lhe compunha a cara. Sabia, que nunca mais a cheiraria ou lhe cofiaria os cabelos. Sabia, que nunca soube como é que tudo acabaria. Afinal não sabia que as mães também morrem, deixando os filhos órfãos de conduta.

Último beijo numa cara já decomposta.

Abraçou-a durante sensivelmente dois minutos e guardou na pele, todos os sentidos que um passado morto ainda lhe conseguisse dar. Forçava a memória a mantê-la viva. Cheirou-a pela última vez e ficou grata. Soube naquele momento, que guardaria para sempre aquele cheiro a alfazema.

Nesses minutos, chorou incessantemente de ser vazio.  
Também ele chorou. Ele era daqueles que foi lá para chorar.

Nuno Miranda de Torres

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